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resenha declarando que Arnaldo Antunes é o melhor compositor brasileiro da
atualidade. Essa constatação pode ser óbvia para muita gente, mas caso a participação
na fase de ouro do Titãs e uma carreira de dezesseis álbuns, dentre os quais estão
clássicos como O Silêncio, de 1996, Um Som, de 1998, Paradeiro, de 2001 e
Saiba, de 2004, não seja argumento suficiente, talvez a qualidade individual de
músicas como “O Silêncio”, “Música Para Ouvir”, “As Árvores”, “Socorro”, “Atenção”,
“Essa Mulher”, “Se Tudo Pode Acontecer”, “Nossa Casa”, “Saiba”, “A Casa É Sua”
possa ajudar a reconhecer a veracidade da polêmica declaração. O estilo excêntrico de Arnaldo
Antunes, associado ao domínio completo das melodias e à sua formidável
qualidade e criatividade poética, que sempre fala das coisas mais comuns da
forma mais incomum possível, faz com que seus trabalhos sejam sempre poços
profundos nos quais deposita todo seu gênio, sua visão de arte, de poesia, da vida,
além da sua própria visão de mundo. Surge agora uma nova oportunidade para quem
ainda resiste à ideia inicial, ou seja, a de que Arnaldo Antunes seja o melhor
compositor brasileiro da atualidade. O lançamento de Já É, nome do décimo sexto
disco da carreira solo, marca um distanciamento do som apresentado nos seus
dois últimos trabalhos de estúdio, Iê, Iê, Iê, de 2009, e Disco, de 2013, nos
quais Arnaldo optou por um estilo enraizado no rock, especialmente o rock dos
anos 50 e 60. Já É pode soar, portanto, como um “retorno à raiz” para Arnaldo
Antunes, mas a questão é: qual seria a raiz para um artista que sempre
demonstrou não ter raízes? Ou seja, para Arnaldo Antunes, a raiz é flertar com
um som e um estilo em um momento, para logo em seguida experimentar outros
estilos que melhor se adaptem à sua ideia original. É exatamente essa variedade
sonora que está presente em Já É.
A
faixa que abre o disco, “Põe Fé Que Já É”, que inspira o título do trabalho e
foi escolhida para a primeira música de trabalho com um vídeo bem interessante,
é dançante e animada e mostra uma postura bem enérgica e positiva diante da
vida, afinal, “se você tá feliz, se você tá contente, se você mete a cara, se
você mete o dente, (...) se o momento é preciso, o desejo é propício (...) põe
fé que já é”. A música seguinte, “Antes”, é uma das que apresenta sonoridade mais interessante e diferente, com arranjos bem colocados. Na letra,
Arnaldo Antunes faz algo como uma hierarquia de sensações, atitudes e
sentimentos, antes de afirmar rejubilante no refrão “e depois alegria, e depois
alegria e gratidão”. “Naturalmente, naturalmente” é a primeira das várias
parcerias com Marisa Monte e Dadi Carvalho, uma canção leve, bonita e simples,
que combina perfeitamente com a naturalidade sugerida na letra.
Arnaldo
Antunes tem um interesse em abordar temas e emoções contraditórias, inconvenientes
e/ou negativas. Ele usou o humor para
descrever a inveja e os seus respectivos efeitos em “Invejoso”, do disco Iê Iê
Iê, de 2009. Agora quem vai para o divã, ou melhor, para a mesa de trabalho é a
mágoa. Você pode ter ouvido várias músicas que tratam da mágoa, mas poucas
mexerão com você como Arnaldo Antunes faz em "Se você nadar", com uma
pegada mais forte do que as anteriores, principalmente se a carapuça lhe
servir. Utilizando-se de imagens e metáforas para lidar com os efeitos da mágoa
(“os micróbios gostam de água parada”), Arnaldo Antunes foge do lugar-comum ou
da sensação de auto-ajuda. Na verdade, várias músicas de Já É apresentam esse
lado mais esperançoso e afirmativo diante dos desafios e perdas da vida do que
o lado sombrio e depressivo. Mesmo nas canções tristes, há um fio de esperança,
uma busca incessante por uma saída da crise, do desespero. "Peraí,
repara" é outra parceria de Arnaldo Antunes, Marisa Monte e Dadi Carvalho
(dessa vez Marisa Monte realmente divide os vocais com Arnaldo), com jogos de
palavras e sonoridades com as palavras com o prefixo "para". É
incrível como a voz de Arnaldo Antunes e a de Marisa Monte se unem como se
fossem feitas uma para a outra. Não surpreende a grande quantidade de parceria
entre os dois.
"Óbitos" marca a volta de Arnaldo Antunes com o reggae, já trabalhado anteriormente pelo cantor em, por exemplo, "Pare o Crime (Stop the Crime)”, do álbum Um Som, de 1998, na qual ele faz um apelo para o fim da violência urbana. Arnaldo Antunes volta à temática da violência, dessa vez focando suas críticas nos burocratas e legisladores cujas leis matam sem a necessidade de empunhar eles próprios arma nenhuma. "eles não pegam em armas, só em canetas e papéis, mas matam mais com suas leis, que atiradores cruéis, Estatutos de escorpiões, despachos de cascavéis, cobertos de suas razões dos cabedais até os pés". Depois de tudo só sobra, como diz a letra, “lágrimas, lágrimas nos funerais”. Já disse aqui que ninguém fala de temas banais da mesma forma que Arnaldo Antunes. Em "O meteorologista", um grande exemplo disso, o humor é utilizado como recurso lírico para abordar o amor. Arnaldo Antunes, com toda sua sagacidade e genialidade, brinca com um erro do metereologista, que falou que o fim de semana seria de sol, mas na verdade foi com frio e chuva. A partir daí ele diz que não quer férias no Rio de Janeiro, Bahamas ou Bahia; só quer férias na Sibéria e Alaska para ficarem juntos na cama. Divertida e bela.
"Dança", mais uma
parceria com Marisa Monte, é uma balada no violão utilizando-se de belíssimas e
inusitadas imagens poéticas. As rimas são tão naturais que rimar flamboyant com
manhã não parece nem um pouco forçado e a naturalidade e o encaixe melódico
funcionam perfeitamente. Em seguida, Arnaldo Antunes recorre ao samba na faixa
"Saudade farta" com mais uma bela letra sobre as lamúrias e a
necessidade de conformar-se diante de um amor impossível. "As estrelas
sabem" é uma bela balada só Arnaldo Antunes com o acompanhamento de um
piano e um violino. A letra contém talvez a melhor construção de imagem poética
do disco: "as estrelas pelo chão, são pedaços de carvão, sem o seu
sorriso". Belo. As estrelas continuam no foco em "As estrelas
cadentes", uma das melhores melodias e letras do trabalho inteiro, que vê
o fim de um amor e aponta para o futuro com esperança. Só Arnaldo Antunes mesmo
para sair com uma estrofe como essa: "para a chuva molhar o deserto, e as
correntes tomarem o rumo certo, das lágrimas caídas nos vasos regados nascerem
flores, e as abelhas beberem o pólen delas, e as lagartas comerem as folhas
delas, transformando em vida nova todos os velhos amores".
"Na
fissura" é um rock que trilha o caminho dos últimos trabalhos de Arnaldo
Antunes, composta em conjunto com os membros de sua banda, Betão Aguiar e Chico
Salém."Azul e prateado" é talvez a única que não brilhe por si mesma,
mas ainda assim mantém o nível interessante. Nas duas últimas faixas, "Só
Solidão", que se encaixaria perfeitamente no álbum Acústico, e "Aqui
onde está", o clima contemplativo ganha força.
Diante disso, Já
É pode entrar na lista de um dos melhores trabalhos da carreira de Arnaldo
Antunes. A sua já conhecida e qualidade lírica e poética de grande compositor,
que sempre esteve presente nos seus discos, uniu-se mais uma vez com uma
variedade sonora bastante interessante, que estava ausente nos últimos dois
trabalhos, que tinham uma proposta bem limitada e definida. Então, quando eu
digo e reafirmo que Arnaldo Antunes é o melhor compositor brasileiro da
atualidade, já posso ouvir a resposta: “Já É”.
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