O mundo da
música é bastante surpreendente e escolher escrever sobre ele é uma tarefa pode
à qualquer momento nos colocar em algumas situações inimagináveis. Explico: se
me perguntassem quando iniciei o Filho do Blues que escreveria uma resenha
entusiasmada de um álbum de Elza Soares eu provavelmente, incrédulo, iria
sorrir desdenhosamente (mais por ignorância minha do que por falta de méritos
da sambista de 78 anos, mas como não fazia parte da minha esfera musical, nunca
cheguei a dar muito valor ou atenção). Pois o mundo da música, amigos, nos
prega peças (ou lições) deveras curiosas. É com uma satisfação redobrada que
escrevo hoje a resenha do último trabalho da cantora Elza Soares, chamado A Mulher do Mundo. Diante da correria de fim de ano, tentando organizar a
lista de melhores álbuns do ano e fazendo uma derradeira busca por novidades
que possa ter deixado passar, um amigo me indicou este álbum com ótimas
referências. Como nos últimos anos ampliei bastante meu nicho musical, fui
conferir. E mais uma surpresa: A Mulher do Fim do Mundo é um dos discos mais
interessantes do ano em diversas esferas; musicalmente, o álbum transita de
forma muito natural e elegante entre diversos gêneros musicais, como o samba,
claro, o rock, o eletrônico, dentre outros; e, principalmente, o âmbito lírico
não fica submisso ao campo sonoro e, por isso, A Mulher do Fim do Mundo é um
excepcional fruto do seu próprio tempo, com letras bastantes críticas sobre as
transformações, desafios, problemas e retrocessos que testemunhamos diariamente
na sociedade brasileira. As temáticas são amplas e vão desde a violência doméstica,
a violência policial nas periferias, questões de gênero como feminismo e
sexualidade. Ou seja, Elza ainda tem muito o que dizer!
A história do disco já inicia de forma curiosa, pois mesmo com décadas de carreiras e discos lançados, A Mulher do Fim do Mundo é o primeiro disco de Elza Soares com músicas totalmente inéditas (de outros compositores). E o álbum já começa em grande estilo, com o poema “Coração do Mar”, de Oswald de Andrade, cantada à capela, que já é emendada com o samba tradicional que dá título ao álbum, “A Última Mulher do Mundo”, uma Ode à Avenida, em que Elza confirma: “Mulher do fim do mundo eu sou e vou até o fim cantar”. De fato, a música vai entrando num fade out e ela continua cantando até o fim. A faixa seguinte, “Maria da Vila Matilde” retrata a violência doméstica e os esforços para escapar deste ciclo pernicioso, com Elza dizendo várias formas de manter afastado o agressor, como ligar para o 180, colocar o cachorro pra cima dele, e, por fim, Elza canta, quase como um alívio, uma libertação: “cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”.
“Luz Vermelha”
também tem uma letra reflexiva e cheia de imagens de periferia, tiroteios, que
remetem a solidão e ao enclausuramento de uma metrópole como São Paulo, e aqui
o samba já se encontra com a guitarra elétrica, fazendo uma mistura bem
interessante, com rap e algo parecido com punk. O tom apocalíptico é resumido
quando Elza, ou o anão, atesta: “bem que o anão me contou que o mundo vai
terminar num poço cheio de merda”. Inclusive, papas na língua é coisa que Elza
Soares realmente não tem, a começar pelo título da faixa seguinte, “Pra Fuder”,
com imagens, por sua vez, bem luxuriosas, como “unhas cravadas induzem latejo”.
Em “Benedita”
a temática volta a ficar séria, com a sonoridade migrando frequentemente, indo
e voltando, enquanto Elza fala das frequentes vítimas de balas perdidas pelas
periferias Brasil afora e do tráfico de drogas. “Benedito é uma fera ferida,
traz na carne uma bala perdida”.
Na faixa
“Firmeza?!”, enquanto retrata um diálogo típico da periferia, o destaque vai
para Elza se aventurando um pouco mais no rap com um saxofone no fundo bem
interessante. O tango mórbido e póstumo de “Dança” mantém o ritmo interessante,
bem como “Canal”, com traços meio que orientais e referências históricas
interessantes, como o “brilho do Farol de Alexandre”. O caminho é mais
solitário em “Solto”, que contém uma orquestra, enquanto Elza mais fala
do que canta. Para finalizar, “Comigo” resgata inicialmente o barulho de
guitarras, mas de súbito tudo some e Elza volta a cantar à capela, tal qual o
início, soltando um dos mais belos versos do disco: “levo minha mãe comigo pois
deu-me seu próprio ser”.
E é assim que
finaliza A Mulher do Fim do Mundo, um silêncio, seguido de mais silêncio, e,
depois, lá no fundo, ainda ressoando a voz de Elza Soares, afinal, como ela
mesma disse: “eu vou cantar até o fim”. Sinta-se à vontade. E perdão pela
injustiça.
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