quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Resenha de David Bowie - Blackstar (★)




                Como é possível para um artista beirando os 70 anos, dono de uma carreira excepcional de cinco décadas em todo e qualquer sentido, manter-se ainda ambicioso? A revista Uncut colocou uma enquete com 59 escritores e editores para saber os 200 melhores álbuns de todos os tempos. David Bowie foi o artista que teve mais menções (7 de seus álbuns estão entre os duzentos melhores da história; Beatles foi mencionado 6 vezes; The Cure, Bob Dylan e Neil Young, 5 vezes; The Rolling Stones, The Velvet Underground, 4 citações). Um artista desse nível, no sentido completo do termo, baseia sua motivação em continuar em termos de relevância, ou seja, em que pode contribuir ainda mais para permanecer relevante. É com essa reflexão que começo falando do novo álbum de David Bowie, Blackstar (), seu 25º álbum de estúdio.  As resenhas iniciais das revistas especializadas mostram um entusiasmo e aclamação que os últimos trabalhos de Bowie, apesar de serem ótimos álbuns, não havia alcançado de forma tão unânime. A revista Rolling Stone definiu como “O artístico e inquietante ‘Blackstar’ é a melhor obra prima anti-pop de Bowie desde os anos setenta”; o jornal The Independent afirma que “Blackstar é o mais longe que ele já se desviou pop”; A revista Uncut chama atenção para a amplitude do álbum “Jazz metal! Musical! Transformações sobrenaturais! Bem vindo ao (mais novo) ano zero de Bowie”; O New York Times é mais suscito e atesta: “Pegando o jazz de inspiração”. Todas essas resenhas exaltam em componentes presentes nos álbuns mais clássicos da carreira de Bowie apontados na lista acima e elementos de uma ruptura completa com os trabalhos mais recentes, sugerindo uma nova fase na carreira de David Bowie.


                Bowie é dono de uma das carreiras mais diversificadas do mundo da música. Artista inquieto, curioso, inventivo e completo, o camaleão do rock nunca ficou muito tempo confinado num único estilo. Normalmente, esses ciclos duram em torno de três álbuns, até que uma nova transformação esteja maturada. O último desses ciclos é representado por um Bowie tentando revisitar momentos clássicos de sua trajetória, um rock mais tradicional, e, por conseguinte, menos aventuroso. Os discos Hours, Heathen e Reality, de 1999, 2002 e 2003, respectivamente, são os frutos desse ciclo. Após um hiato de dez anos, David Bowie voltou surpreendentemente em 2013 com o álbum The Next Day, que pode se situar em um meio termo nessa linha de evolução. Ao mesmo tempo em que revisita Bowies do passado, The Next Day não se limita ao Bowie clássico, mas sim tenta fazer uma grande síntese de sua carreira (se é que é possível). Mas não apenas isso; mostrou um Bowie inventivo e com um olho no futuro, o que foi logo em seguida comprovado com a coletânea lançada Nothing Has Changed, de 2014. Numa faixa (a única inédita) em especial desta coletânea estava o embrião para uma nova fase, uma nova transformação na carreira de David Bowie. “Sue (Or In a Seasonof Crime)” apresentou um som completamente novo, mesmo em termos de Bowie. Seria essa a tal nova direção para a qual sua mente estava agora voltada? Outra faixa que surgiu como seu lado-B mostrou que essa aventura não havia sido isolada; “Tis’ A Pity She Was a Whore” tinha a mesma pegada estranha, um jazz eletrônico e tomado por solos de saxofone livres e dissonantes. Pouco sabíamos o que se passava na cabeça de Bowie (e menos ainda saberemos cada vez mais).  Até que em meio a participação de trilha sonora de série (The Last Panthers) e de uma peça de teatro (Lazarus), David Bowie anuncia o lançamento de um novo álbum, chamado de Blackstar (é, na verdade, uma única estrela negra, ), junto com o clipe cinematográfico, sombrio e misterioso, com dez minutos de duração, da música de mesmo nome que já ultrapassou as cinco milhões de visualizações no youtube.  A partir daí ficamos sabendo um pouco da história por trás do álbum .




                A aproximação com o jazz foi determinante para o surgimento de . As raízes já estavam criadas, mas foi depois do encontro – e posterior convite para compor a banda – de Bowie com o saxofonista DonnyMcCaslin que deu corpo à idealização do novo projeto. Donny já tem sua própria carreira solo, com dez álbuns lançados, e, depois de Bowie assistir de surpresa a uma apresentação sua em Nova York, passou a integrar a banda que gravou , junto com os integrantes de sua própria banda, como o tecladista Jason Lindner, o baixista Tim Lefebvre, o percussionista Mark Guiliana e o guitarrista Ben Monder. Tirando o produtor e amigo Tony Visconti, toda a equipe da banda era totalmente nova para David Bowie.

                Passemos agora, de fato, para a análise das sete músicas que compõem Blackstar, fazendo dele um dos discos mais concisos da carreira recente de Bowie (apenas quarenta minutos). A faixa de abertura é a já conhecidíssima “Blackstar”, que tem uma das alterações mais incríveis no meio de uma música. A ponte em que Bowie começa a cantar acompanhado pelo piano e que vai crescendo é simplesmente genial. Uma música dentro da música de forma teatral. O fato de conhecermos previamente duas das sete músicas servia quase como um anticlímax, ao menos até “Tis’ a Pity She Was A Whore” começar totalmente repaginada. A explicação está intimamente ligada à história de ; a faixa que era previamente conhecida foi gravada em 2014 com a banda Maria Schneider Orchestra (que tinha Donny como saxofonista solo), um experimento pós-moderno de jazz. Como foi dito acima, ela e “Sue (Or In a Season Of Crime)” serviram para indicar a Bowie um caminho certo a seguir. Em , ambas ganharam novas versões com DonnyMcCaslin como líder da banda, o que deu uma liberdade maior para seu sax flutuar livremente pelas músicas. Embora as duas tenham perdido um pouco de tempo de música (dá vontade que tivessem mais de dez minutos cada), o resultado ficou ainda melhor. A produção deixou as duas mais limpas e dá para ouvir mais claramente a overdose de sons que passeiam freneticamente pela música, com solos asfixiantes de sax (em alguns momentos de “Tis’ A Pity SheWas a Whore” dá para ouvir Bowie soltando vários “Woo” deempolgação) e o momento mais rock n’ roll do disco, ao final de “Sue (Or In a Season Of Crime)”, com guitarras distorcidas relembrando um pouco do rock industrial dos meados da década de 90. A faixa seguinte, “Lazarus”, que foi uma das quatro novas músicas compostas por Bowie para o musical de mesmo nome (mas a única que entrou na seleção final de ), é mais simples – ou melhor, direta – do que as anteriores, focada mais na melodia, mas ainda com espaço para o sax de Donny se destacar, especialmente na metade final.





                A quase robótica “Girl Loves Me” é a mais estranha do álbum, com a letra quase irreconhecível, com palavras coletadas da obra Laranja Mecânica e gírias do chamado Polari, utilizado pela comunidade artística e membros da subcultura gay da Londres de meados do século XX,  mas com um ritmo muito interessante. “Dollar Days” é o mais próximo de uma balada aqui, com um piano delicado e simplesmente um solo incrível de saxofone. E parafechar o álbum de forma épica, “I Can’t Give Everything Away” parece desvendar um dos grandes mistérios de Bowie (ou não): “Saying more and meaning less / Saying no but meaning yes / This is all I ever meant / This is the message that I sent”. Nunca isso ficou tão claro – ou, na verdade, obscuro – quanto em . As temáticas são soltas, enigmáticas, cheios de personagens (às vezes mais de um por música, como em “Blackstar”) e transformações esquisitas. Não existe um fio condutor temático em Blackstar; existe um pouco de tudo: o sobrenatural em “Blackstar” (“Something happened on the day he died/Spirit rose to leave him and stepped aside”); imagens violentas em “Tis’ A Pity She Was a Whore” (“Man, she punched me like a dude/Hold your mad hands, I cried); cenas de assassinato em “Sue (Or In a Season of Crime); uma letra quase criptográfica como em “Girl Loves Me”; ou a reflexão cheia de nostalgia sobre a luta contra a morte de “Dollar Days(“Dollar days 'til final checks, honest scratching tails the necks I'm falling down”).

                Pelo resultado encontrado em , tudo indica e espera-se que de fato seja a inauguração de uma nova fase da carreira de David Bowie; os próximos passos, como sempre são quando se está falando de David Bowie, são imprevisíveis. Enquanto isso cabe a nós recolher as riquezas do disco a cada vez que o colocamos para tocar. Somente o distanciamento histórico necessário será capaz de definir a posição de no hall de clássicos de David Bowie; mas algo muito forte sugere que estamos diante de um álbum daqueles que marcam uma geração.


Um comentário:

  1. Fiquei a saber á umas horas que, infelizmente, David Bowie tinha morrido e agora encontro-me a ler este post. Obrigado pelo legado.

    ResponderExcluir