São
poucos os que, mesmo dentre os mais notáveis, possui a história e a carreira
como a de Eric Clapton. Ele podia ter entrado para a história apenas como um
dos que levaram de volta o blues para o grande público branco e de classe média
dos Estados Unidos, mas não; poderia ser reverenciado como um grande cantor de
blues apenas pelos aficionados do gênero, mas também não; Clapton poderia ser
apenas o “deus da guitarra” para os mais classicistas do rock, mas também não
seria o bastante; por fim, ele poderia ser apenas um grande expoente da música
pop, mais um que venderia milhões e milhões de discos e tocaria diariamente nas
rádios, mas quantidade não corresponde à qualidade. Se não bastaria ser apenas um desses, que tal
ser tudo isso? Bem, eis Eric Clapton. Aí você pergunta, é o bastante? Seria
para qualquer um, mas Clapton acha que não e seu novo disco, o seu vigésimo
terceiro, I Still Do, é declaração de amor à música, à música que ele ama. No
decorrer de 12 músicas, Clapton nos entrega duas faixas inéditas e o restante são
regravações de músicas de artistas que ele admira, transitando um pouco por
cada estilo que o consagrou, blues, rock e até mesmo um pouco de reagge. Para I
Still Do, Clapton se reuniu novamente com o mesmo produtor do seu grande álbum
Slowhand, Glyn Johns.
I
Still Do circula ao redor de três eixos gravitacionais, cada qual com seus
destaques e representando algumas facetas importantes na carreira de Eric
Clapton: o primeiro desses eixos centrais é, e não poderia deixar de ser, o
blues. Através de ótimas escolhas de
covers, mais uma vez Clapton utiliza seu espaço e seu talento para mais uma
declaração ao gênero musical que transformou sua vida. A faixa de abertura é a
ótima “Alabama Woman Blues”, de Lorey Carr, com ótimos solos de guitarra e
teclado. Com certeza Clapton não deixaria de fora um de seus grandes ídolos do
blues; Robert Johnson está presente na faixa “Stones In My Passway”. A surpresa
aqui fica com um artista pouco tocado por Eric Clapton, ou seja, Skip James.
Clapton fez uma incrível versão da faixa “Cypress Grove”, dando um toque mais
especial ao disco. O outro eixo central são as duas músicas inéditas, compostas
pelo próprio guitarrista britânico. A primeira delas é a ótima “Spiral”,
bastante nostálgica e na qual Clapton reafirma seu desejo de continuar tocando
e criando música. “You don't
know how much this means / To have this music in me / I just keep playing these
blues / Hoping that I don't lose”. O trabalho de guitarra que Clapton
desenvolve na faixa sem dúvida se sobressai diante de praticamente todo o
álbum. A segunda é a romântica “Catch The Blues”, num ritmo quase samba, com
solos de guitarra deslizando pela música.
O
terceiro centro gravitacional é tributo a artistas que Clapton admira bastante
e de músicas tradicionais do mundo pop que de alguma forma o marcaram. Dentre
eles estão J.J. Cale (para o qual Eric Clapton já dedicou um disco inteiro, em
2014), com “Can’t Let You Do It” e a maravilhosa “Somebody’s Knockin’”, que
abre o show comemorativo Slowhand At 70 – Live At The Royal Albert Hall,
gravado em 2015, e Bob Dylan, com a versão de “I Dreamed I Saw St. Augustine”. O
disco ainda guarda alguns belos atos, como o momento reagge, que fica a cargo do
misterioso dueto “I Will Be There” (ninguém sabe quem canta na faixa, junto com
Clapton). As teorias da conspiração já começaram, e conjecturaram que poderia
ser ou uma gravação perdida dos arquivos de George Harrison ou até mesmo o
filho de Harrison, já que o vocal está creditado para Angelo Mysterioso,
parecido com o nome que Harrison assinava colaborações escondidas com outros
artistas (L’Angelo Mysterioso). “Little Man, You’ve Had a Busy Day”, uma
desolada balada no violão para se ouvir de olhos fechados depois de um dia
bastante difícil. “Come along
there soldier, and put away your gun / The war is over for tonight”. Também
tem lugar para um gospel tradicional em “I’ll Be Alright”. Por fim, Clapton
finaliza com “I’ll Be Seeing You”, que foi popularizada por Billie Holiday.
O
diferencial de um álbum novo de um artista já consagrado é que ele não compõe
pressionado, não tem nada mais a provar a ninguém, o que torna o álbum
despretensioso e, de certa forma, revelador de um lado mais pessoal e humano do
artista. É algo que acontece com vários desses deuses do rock, como Paul
McCartney e Bob Dylan mais recentemente. Não nos compete comparar com os clássicos
feitos do passado, apenas desfrutar de mais alguns momentos musicais agradáveis
com um gênio da música, algo quase em extinção. I Still Do é um álbum leve e
que mostra que Clapton ainda tem o blues. Sugere-se que este pode ser o último
disco de sua carreira, de acordo com uma nota que o próprio escreveu; nesse
caso, seria uma delicada, singela e suave despedida.