Quando a tragédia se abate sobre
a nossa vida, é natural cada um reagir de forma diferente; e a música, sendo
uma das grandes manifestações artísticas do ser humano, muitas vezes é uma
força catalizadora para lidar com esses momentos de extrema tensão, dúvida,
medo, ansiedade, e assim por diante. Há incontáveis discos inteiros dedicados a
alguma forma de tragédia, seja a de um fim de relacionamento, tragédias
humanitárias e, naturalmente, discos que tratam sobre a batalha mais definitiva
de todas: a batalha pela vida. Normalmente, quando um artista sobrevive a uma
experiência de vida ou morte, seja acidente ou doença, ele utiliza sua arte
para canalizar suas percepções sobre essa fase difícil, essa batalha da qual
ele, aparentemente, sagrou-se o vencedor. Essas impressões dependem muito de
cada um, do que experimentou, de como se sentiu; mais comumente elas soam
depressivas, mórbidas, com o pensamento da morte sempre presente e representado
por um som mais tenso e sombrio. É o caso, por exemplo, da banda indie
Spiritualized, cujo líder Jason Pierce lidou com experiências desse tipo –
dupla pneumonia – no álbum Songs In A&E, de 2008, um som melancólico e que
faz o ouvir aproximar-se ao máximo da tensão e da dor sentida por Pierce. Há
outras formas, no entanto, de lidar com essas sensações. E é exatamente isso o
que faz o guitarrista Walter Trout com seu novo álbum, chamado BattleScars,
cujo nome já sugere que serão tratadas as cicatrizes deixadas após a batalha
pela vida.
No
início de 2014, Trout encontrava-se entre a vida e a morte, deitado numa cama
de hospital sem poder mover-se, falar, nem mesmo reconhecer seus próprios
filhos. Ficou em coma por três dias por falência hepática; em 26 de maio de
2014, Trout foi submetido a um transplante de fígado e começou a recuperar-se,
a voltar a viver novamente em um lento processo de recuperação. Durante esse
período, ele ainda conseguiu lançar um álbum, The Blues Came Callin’, sem saber
se sairia vivo do processo. Pois bem, Trout venceu esta batalha e ressurge vigorosamente
com seu novo trabalho, um álbum de blues incrível, que transcende inclusive os
limites do próprio blues. Como
está estampado na própria capa do disco: “Last year has been one where the blues
truly came calling, and I came face to face with death more than once”. Então
Battle Scars representa um paradoxo dentro do blues: embora seja um gênero
originário de um ambiente social extremamente injusto, exploratório, e
segregado racialmente, as letras do blues utilizam mais a ironia e o humor como
forma de confrontar e resistir a esse ambiente. São, portanto, e de certa
forma, letras mais leves e indiretas, cheias de duplo sentido e saídas
inusitadas, que se unem a um som vivo e dançante que parece celebrar o milagre
da vida. Walter Trout utiliza-se desse estilo musical e acrescenta ao som vivo
e intenso, através de letras pesadas e densas, temáticas relativamente novas ao
mundo do blues, como a morte, por exemplo. O blues, como um natural gênero de
sobrevivência, que canta e celebra a existência, apesar de tudo, é a forma
perfeita de Walter Trout ressurgir como um jovem de 17 anos, como ele próprio
diz: “At first I wasn’t strong enough to play a single note on the guitar, but as I
regained my strength, the music came back to me. Now when I pick up the guitar, it is liberating, joyful, and limitless. I
feel like I’m 17 again.” Mas foi um longo e duro caminho até lá. E é isso que ele
mostra em Battle Scars: a jornada pela vida da primeira música à última, em
todas suas nuances e reviravoltas, em momentos de desespero e esperança, de
perda da fé e da fé renovada, em achar que é o último dia vivo, em desejar
desesperadamente que viva, ao menos, até o dia seguinte.
O
álbum inicia com a faixa “Almost Gone”, que, como o título sugere, é um relato
de um sobrevivente. Na alternância de intensos solos de guitarras e gaitas,
Trout começa a falar de suas impressões e sobre as pessoas que o fizeram manter
a fé, a continuar lutando: “Now I get the feeling/Something’s going wrong/Can’t
help but feelin’/I won’t last too long”. A letra mostra a luta entre pessimismo e
otimismo, mesmo sendo impelido a lutar, Trout diz na letra:
“we both know i’m almost gone”. Logo em seguida sirenes começam a disparar, dando
uma noção exata do local onde estamos e o motivo pelo qual estamos ali. “Omaha”
é uma das mais intensas. Ela se refere ao tempo em que Trout ficou no centro
médico em Nebraska e tudo o que acontece no cotidiano de um hospital: a dor
(própria e alheia), transplante de sangue, pessoas morrendo ao redor, as
famílias chorando, etc. Em “Tomorrow Seems So Far Away”, numa música intensa e mais
uma vez cheia de solos sensacionais na guitarra, Trout lida exatamente com essa
expectativa e deixa claro: a luta é mais do que dia a dia, é hora a hora,
minuto por minuto, já que “just hangin’ on, gimme one more day; but tomorrow seems so far away”.
Chega
a etapa do disco cheia de contrastes. O tom musical muda drasticamente na
delicada, mas dolorosa, “Please Take Me Home”, na qual Walter Trout se aproxima
bastante de algumas baladas de Bruce Springsteen, inclusive na voz. A letra é
quase uma súplica de Trout para ser levado para casa. “Playin’ Hideaway” é bem
enérgica, com vozes em coro no refrão, cantando quase jubilosamente. É o
contraste de “Haunted By The Night”, canção mais sombria do disco, na qual
mostra um Trout sem fé, cansado de lutar, preso numa cama de hospital sem poder
andar e achando que o diabo está rindo na sua cara, enquanto é perseguido pela
noite. “I’m looking in Hell,
but i can’t stand the sight, I’m trembling in the darkness, cause I’m haunted
by the night”. Sem dúvida ela
captura Walter Trout no seu fundo do poço, do qual ele tenta desesperadamente
sair já na faixa seguinte, “Fly Away”, um rock direto, vivo e livre, que
representa uma tentativa, ou fantasia, de libertação, qualquer que seja, a
morte ou a recuperação. A fé aparece renovada aqui
“can you hear me when I pray? we’re gonna fly, we’re gonna fly away”.
Após
a fase dos contrastes, a esperançosa “Move On”, a guitarra continua a delinear
o caminho, mas parece que foi feita na fase de recuperação, pois agora Trout
parece olhar mais para frente, já tentando vislumbrar como a sua experiência
mudou sua visão de mundo. Em “My Ship Came In” tem a volta da gaita já na
introdução. Terminada a parte brilhante e positiva do álbum, os reflexos sobre a
morte parecem ter voltado na música mais diretamente blues do álbum, e,
portanto, uma das melhores, “Cold, Cold Ground”, ou seja, a batalha pela vida
continuava. “I could hear the
angels calling, lord I just can’t stand the sound, I need to believe I ain’t
ready for the cold, cold ground”. Então a música continua com uma
sensação onírica de algum sonho ou alucinação proveniente do coma, mas sempre
com a certeza de que o seu tempo não havia acabado. Ainda por cima, a música
apresenta um dos mais belos solos de guitarra do álbum. “Gonna Live Again”,
tocada no violão, é quando finalmente ele percebe que irá viver e sairá
vencedor dessa batalha e não importa o que o fez passar por isso, ele apenas
deve deixar esse momento para trás, já que agora está vivendo novamente e está
com a chance de ser um homem melhor. A Deluxe Edition ainda tem duas músicas
bônus, “Things Ain’t What They Used To Be”, só Trout com o violão e gaita, e
finaliza com “Hell To Pay”, também um blues acústico de primeiríssima qualidade.
Depois
do drama vivido, Walter Trout acaba por nos entregar o melhor álbum de sua
carreira. Claro que a carga emocional tem um impacto profundo nas músicas e as
fazem ter uma conotação ainda mais forte. Mas é a honestidade que faz com que
Trout consiga nos transportar um pouco que seja para sua vida. As cicatrizes da
batalha são as lições que ele aprendeu em sua jornada, as quais ele consegue
repassar um pouco delas para nós, ainda que não passemos pelo drama que ele
passou. Um drama pessoal não é o suficiente para um bom álbum. Pode ser mais tentador
do que parece tentar esconder profundas experiências pessoais e espirituais por
trás de clichês. E definitivamente não é isto que Walter Trout faz em
BattleScars. Você pode ouvir o álbum completo pelo youtube neste link.
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