Começo a escrever esta postagem com uma solenidade quase religiosa. Desde que, por pura paixão, comecei com o Filho do Blues, havia uma satisfação imensurável a cada resenha que escrevia. Mas, da mesma forma, havia sempre tristeza proporcional. Toda vez que conseguia pescar uma preciosidade, ao mesmo tempo que eu comemorava, vibrava e me arrepiava, vinha uma consciência severa que lamentava profundamente: “mas você nunca escreverá uma resenha para um álbum inédito de David Bowie”. E assim eu seguia em frente. Isso porque depois do lançamento, em 2003, do disco Reality, Bowie sofreu com um problema no coração na turnê mundial, em 2004, e, depois disso, simplesmente saiu dos holofotes. Disse que iria se afastar e viver uma vida normal, de marido e pai, com sua esposa, a modelo Iman, e a filha do casal, Alexandria. Não houve uma declaração oficial dizendo que estava se aposentando da música. No entanto, ano após ano, havia um silêncio mortal em relação a Bowie, com pouquíssimas aparições públicas. Isso, para um artista muito produtivo, era um anúncio do fim de um deus. Mas, quando se trata de David Bowie, nada pode ser premeditado. Nos últimos anos, ele e seu grande produtor Tony Visconti começaram o processo de gravação do que viria a ser o que ouvimos hoje, ou seja, o álbum The Next Day. Os dois e todos os participantes do projeto, trataram o retorno como um segredo do Vaticano. Nenhuma informação vazou e, no seu aniversário de 66 anos, David Bowie pregou uma peça em todo mundo e anunciou o novo disco e divulgou o primeiro single “Where Are We Now?”. Os fãs, a imprensa, os artistas, enfim, todos ficaram em polvorosa passando a supor o que Bowie estaria aprontando agora, quais os estilos ele iria adotar nesse novo trabalho, depois de um espaço inédito na sua carreira de dez anos sem novos lançamentos. Passado algumas semanas, no dia 26 de fevereiro, ele divulgou o clipe de “The Stars (Are Out Tonight)”, com a participação de Tilda Swinton. Alguns dias depois e, ontem, ele disponibilizou o stream grátis de The Next Day, que só será lançado oficialmente no dia 11 de março. E eis que estou agora realizando o sonho do Filho do Blues de escrever a resenha de The Next Day, que ainda por cima, acaba de ser o melhor trabalho que David Bowie lançou em 33 anos, ou seja, desde Scary Monsters, de 1980, considerado o último clássico bowiano. Eis agora mais um.
Vamos agora à difícil tarefa de tentar fazer jus à The Next Day, que começa com a faixa título. Bowie sabia que a ansiedade seria grande ao ouvir a música de abertura de um disco após tanto tempo. Por isso, ele tinha a consciência do que ela tinha que ser, o grande cartão de visita que tinha que dizer a que veio. E é exatamente isso que “The Next Day” é: um rock forte, agitado, furioso, mesclando o Bowie clássico ou o inovador, principalmente na forma que o vocal foi gravado, em dois canais e com tons diferentes, dando o tom de estranheza prazerosa que existe em David Bowie. No refrão, com uma voz vigorosa, Bowie faz questão de se reapresentar: “here i am, not quite dying”. “Diry Boys” é uma incógnita e, por isso mesmo, ela é maravilhosa, uma das melhores do álbum. É como entrando cautelosamente em território proibido, com os “garotos sujos”. Musicalmente ela é ainda mais incrível. Com um sax grosso e um riff que lembra “Fame”, não dá para defini-la claramente. É um meio caminho entre o soul de Young Americans, porém menos dançante, e a aspereza da era de Berlin.
Em “The Star (Are Out Tonight)” o ritmo volta a ficar intenso. Lembra a era de Ziggy, sobretudo “Watch That Man”. Dá para notar assim já nas primeiras músicas o quanto Bowie irá diversificar em The Next Day. Há um pouco de tudo e de novo também. Apenas pelo começo de “Love is Lost” já impressiona pela intensidade tensa com o baixo constante, tocado pela majestosa Gail Ann Dorsey, um órgão constante e tenebroso e a guitarra de Gerry Leonard furiosa. A já conhecida “Where Are We Now?” mostra o lado nostálgico de Bowie em relação aos anos conhecidos como “era de Berlin”, quando ele lançou Low, Heroes e Lodger e produziu os dois melhores trabalhos de Iggy Pop, Idiot e Lust for Life. “Valentine’s Day” é tem tudo o que uma bela canção romântica precisa, é doce, meiga e singela, lembrando, por sua vez, um pouco de “Everyone Says Hi”, de Heathen, de 2002, principalmente com os backing vocals, ao mesmo tempo que tem um ar do glam do próprio Bowie e T. Rex.
Mas se você pensa que só tem referências dos trabalhos de Bowie dos anos 70 está enganado. Tem também aquele polêmico e experimental. O Bowie que não é unânime, o Bowie, principalmente, dos anos 90. Embora o experimento não seja exatamente com técnicas eletrônicas, há muito caos em “If You Can See Me”. Sons estranhos e descoordenados. Mesmo uns gostando e outros não, é por essa que Bowie é o que é. Sempre fazendo aquilo que acha que deve, forçando a si mesmo a ir além. Em “I’d Rather be High” a coisa fica mais tradicional, se é que isso é possível. Tem tons psicodélicos com uma letra filosófica sobre a mortalidade, fazendo uso de uma bateria militar, tema sempre especial no mundo de Bowie. “I’d Rather be high, i’d rather be dead or out of my head”, ele canta. Em “Boss of Me” quem volta é o grave saxophone, baritone, com alguns efeitos eletrônicos.
As músicas são tão ricas que depois de tanta viagem e descobertas, chegamos na décima música. “Dancing Out In Space” faz jus ao nome, com uma batida pop e dançante. Bowie dos anos 80? Pelo menos aquela bateria irritante não está presente. É mais uma prova de que TODOS os Bowie’s estão presentes e lutando aqui. “How Does The Grass” os espasmos recomeçam. A música é genial, cheia de viradas e variações sensacionais. Você simplesmente não sabe para onde ela vai lhe levar, se é pros solos de guitarra, dos corais fazendo “yayaya”, pra dança, enfim, incrível. “(You Will) Set the World on Fire” é um poderoso hard rock, com uma bateria super pesada e um forme riff de guitarra. Grande solo de Earl Slick nessa. Bowie mostra que pode fazer de tudo com a mesma qualidade e genialidade.
“You Fell So Lonely You Could Die” é um balada acústica de fazer chorar. Tem todos os ingredientes necessários para uma grande música, uma orquestra linda, piano, belos backing vocals, uma melodia arrasadora e, claro, Bowie. No final ainda tem a batida clássica de "Five Years". Impossível dizer se intencional ou não. "Heat" fecha o álbum de forma tensa, do jeito que Bowie gosta de finalizar, vide "Bring Me The Disco King", de Reality, dentre outras. É mais uma faixa lenta, embora toca em outra parte da alma, muito mais densa e sombria. A letra conta a estória de um homem com medo do pai e que não tem muito senso do "eu". Um violino torna a coisa ainda mais nervosa. A música vai acabando quase como o fim de uma prece desesperada e desesperançada.
E é assim que o novo clássico de David Bowie chega ao fim. The Next Day tem recebido fantásticas resenhas, dizendo inclusive que era o melhor álbum de retorno da história do rock. Pessoalmente, mesmo com todo entusiasmo que eu estava por ouvir o álbum, eu não esperava que ele seria assim. Bowie escolheu se resumir artisticamente no decorrer de quatorze faixas – sem contar com as três músicas bônus que ainda não saíram – o que, naturalmente, produz um álbum cuja riqueza é sem igual. Ninguém mais, só David Bowie seria capaz de compor um trabalho dessa magnitude.
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