Esse ano foi um pouco atípico, pois tive que me dedicar a outros projetos e acabei deixando um pouco de lado a produção de resenhas sobre os discos. Todavia, não poderia deixar de compilar os melhores na já tradicional lista de Melhores Álbuns do Ano. O mundo, e sobretudo o Brasil, passa por um momento político conturbado. Por isso, o trabalho que resume melhor o ano é a obra-prima de Elza Soares, Planeta Fome.
1. Elza Soares - Planeta Fome
2. Mary Lane - Travelin' Woman
3. Chico César - O Amor é um Ato Revolucionário
4. Fruteland Jackson - Good as Your Last Dollar
5. Christone "Kingfish" Ingram - Kingfish
6. Bob Corritore & Friends - Do The Hip Shake Baby
7. The Cash Box Kings - Hail to the Kings!
8. Jimmy "Duck" Holmes - Cypress Grove
9. Walter Trout - Survivor Blues
10. Jontavious Willis - Spectacular Class
11. Willie Buck - Willie Buck Way
12. Tony Holiday - Porch Sessions
13. Gaye Adegbalola - The Griot
14. Piedmont Bluz - Ambassadors of Country Blues
15. John Clinfton - In The Middle of Nowhere
16. Watermelon Slim - Church of the Blues
17. Leo "Bud" Welch - The Angels In Heaven Done Signed My Name
18. Big Joe & The Dynaflows - Rockhouse Party
19. William Clarke - Heavy Hittin' West Coast Harp
20. Billy Branch & The Sons of Blues - Roots and Branches (}The Songs of Little Walter)
21. John Harp - How Can I Lose What I Never Had
22. Kenny "Beedy Eyes" Smith & The House Bumpers - Drop The Hammer
23. Nick Moss Band - Lucky Guy
24. John Primer - The Soul of a Bluesman
25. Rosie Flores - Simple Case of the Blues
26. Rockin' Johnny - Dos Hombres Wanted
27. Benny Turner - Going Back Home
28. Giles Robson - Don't Give up on the Blues
29. Big Creek Slim - First Born
30. John Dee Holeman - Last Pair of Shoes
31. Harpdog Brown - For Love & Money
32. Jazzmeia Horn - Love and Liberation
33. Mavis Staples - We Get By
34. North Mississippi Allstars - Up and Rolling
35. Little Joe McLerran - Month of Sundays
36. Annie & The Hedonists - Bring it on Home
37. John Mayall - Nobody Told Me
38. Vin Mott - Rogue Hunter
39. Bloodest Saxophone - Texas Queens 5
40. Leonardo Cohen - Thanks for the Dance
41. Li'l Chuck the One Man Skiffle Machine - Mono
42. Luther Dickinson - Solstice
43. Willie Farmer - The Man from the Hill
44. T. Guy - Tell Uncle John
45. Boo Boo Davis - Tree Man
46. Odair José - Hibernar na Casa das Moças
47. John Blues Boyd - Through My Eyes
48. Ronnie Earl - Beyond the Blue Door
49. Bobby Rush - Sitting on the top of the Blues
50. Al Lerman - Northern Bayou
51. Keb' Mo' - Oklahoma
52. Lia de Itamaracá - Ciranda Sem Fim
53. Alexis P. Suter Band - Be Love
54. Mark Joseph - The Musician and the Muse
55. Shady Frank - Home
56. Bad Temper Joe - The Maddest of Them All
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sábado, 28 de dezembro de 2019
terça-feira, 17 de setembro de 2019
Resenha de Elza Soares - Planeta Fome
Elza Soares é um ícone da cultura
nacional, seja como símbolo feminino de resistência diante de uma vida cheia de
sofrimento e reveses, seja como uma das maiores intérpretes da música
brasileira. Desde cedo, Elza travou lutas típicas de uma mulher negra da
periferia, como a fome, violência doméstica e sexual, tendo sido mãe
precocemente, aos doze anos de idade, para logo em seguida padecer da maior dor
de todas: aos quinze anos, perdeu seu segundo filho que sucumbiu à fome.
Pois bem,
mesmo diante de todos os percalços, que fariam com que qualquer pessoa normal
pensasse duas vezes antes de continuar, Elza tentou a carreira musical,
inscrevendo-se no concurso de música do programa de Ary Barroso, na Rádio Tupi,
em 1953. O que se passou no programa tornou-se icônico para a biografia da
cantora. Maltrapilha e com jeito humilde de falar, Ary perguntou a ela: - “de
que planeta você veio?” Elza respondeu: - “Do mesmo planeta que o senhor, seu
Ary. Do Planeta Fome”.
Desde então,
muita coisa se passou. Elza Soares, a Mulher do Fim do Mundo, tornou-se um
ícone da nova geração, graças a parcerias exitosas que conectariam a
octogenária a um novo público. Essa nova guinada veio em 2015, com o aclamado A
Mulher do Fim do Mundo, primeiro álbum totalmente com músicas inéditas. O tom
altamente crítico, reflexivo e enérgico, teve continuidade com o trabalho Deus
é Mulher, de 2018. Agora, no topo de sua carreira, Elza Soares resgata o episódio
que se sucedeu 66 anos atrás no programa de Ary Barroso, lançando seu novo álbum,
Planeta Fome. Culminância dessa nova fase da carreira da cantora, Planeta Fome é
um trabalho ousado do início ao fim, que mostra uma Elza empoderada, destemida,
altiva diante de um tempo em que, como ela diz numa das letras, “lutar por seu
direito é um defeito que mata”. Aos 89 anos, ela dá uma tapa nos “revolucionários
Che Guevara de sofá” e é simplesmente uma – se não a maior – porta-voz da música
de protesto em relação à fase autoritária, fascista, racista, homofóbica, exclusiva
e assassina na qual o Brasil decidiu mergulhar de cabeça nos últimos anos. Ela
conseguiu absorver o zietgiest do Brasil contemporâneo, não somente num tom
pessimista, mas também dando impulso na continuidade da luta por um “Brasil do
Sonho”.
A posição de
Elza fica clara já pela capa do disco, assinada pela transexual e ativista LGBT
Laerte, traduzindo um pouco o tom caótico da nossa sociedade. A
diversidade de ritmos e sons também dá um aspecto fragmentado e caótico, que,
ainda assim, mantém a unidade conceitual que funciona perfeitamente do início
ao fim, ora mais intensa, ora mais calma.
A lapada
começa com “Libertação”, com participação de BayanaSystem e Virgínia Rodrigues.
Aqui Elza já dá seu recado: a Mulher do Fim do Mundo não vai sucumbir. “Menino”,
de composição da própria Elza, é um apelo empático aos jovens que passam
privação, mas que não se voltem contra o próximo para gerar mais violência. Só
assim para acabar com o ciclo que infelizmente muitos jovens estão inseridos e
que não conseguem se libertar.
A faixa
seguinte “Brasis” é uma das mais intensas. As referências nas letras são muitas
e parece que a cada vez que você ouve, percebe ainda algo novo. Fala sobretudo
do Brasil desigual, um que “é próspero” e do outro que “não muda”, um que “investe”
e outro que “suga”. Tem um Brasil que “soca” e outro que “apanha”. Ao mesmo tempo, esses diferentes Brasis pedem
a mesma coisa: no fim do ano estamos todos pedindo paz, saúde, trabalho e
dinheiro. O mais genial dessas letras críticas é que elas são verdadeiramente
nacionalistas e patrióticas. Exaltam o país, o seu povo, a sua diversidade, impulsiona
o Brasil pra frente, pra ficar de cabeça em pé, mas ele teima em ficar para
trás, cabisbaixo.
“Blá Blá Blá”
é uma das construções musicais mais interessantes e imprevisíveis, que, somada
a uma letra ácida, faz dela um dos pontos centrais do disco. É a história de
alguém que quer ficar, mas que só dão motivo para querer ir embora. Entre as
estrofes à machadadas, como diria Nietzsche, a vinheta de “Me Dê Motivo”, de
Tim Maia. É o Brasil à venda pelos patriotas, que vende, aluga e cede as terras
para a América do Norte – nomeadamente os Estados Unidos. É o Brasil que passa reformas que prejudicam os trabalhadores e os mais pobres, dizendo que se não o fizer o
país irá quebrar. É a ideologia no sentido marxista mais claro: as ideias da
classe dominante se impondo nas classes dominadas.
A força dessa
ideologia se torna ainda mais explícita na genial “Comportamento Geral”. Quando
vemos que esta é uma composição de Gonzaguinha, de 1973, percebemos a
intensidade dessa ideologia e que, na verdade, pouca coisa mudou. A letra fala
do cidadão comum, aquele que se sacrifica com um sorriso no rosto, o famoso
capitalista pobre, que “deve rezar pelo bem do patrão e esquecer que está
desempregado”. São cortes na educação, fim de direitos trabalhistas, fim da
aposentadoria, congelamento de salários, mas que “deve aprender a baixar a
cabeça e a dizer sempre muito obrigado”. Não é anacronismo. Essa era a
realidade do Brasil da década de setenta, em plena linha dura da ditadura. No
Brasil de 2019 seguimos a mesma linha, sendo que, pior, de forma mais
consentida. “Você merece”.
Mesmo quando
Elza deixa de lado claramente os temas políticos, as letras continuam a
traduzir a desordem, o caos e a contradição, como quando ela diz, na faixa “Tradição”,
para desconsiderar a razão, desobedecer o coração para descontinuar a tradição.
“E na bagunça dessa vida, se jogue em meio à confusão”. A acústica “Lírio Rosa”
parece perdia em meio a essa miscelânea, mas mostra o lado mais romântico de
Elza.
“Não tá mais
de graça” tem uma das letras mais impactantes, pois faz referência a uma outra
música de Elza Soares, “A Carne”, que diz que a carne negra é a mais barata do
mercado. Pois bem, agora mudou. Não, o negro geme ainda numa poça de sangue,
mas a diferença é que agora ela não está mais de graça, “o que não valia nada agora
vale uma tonelada, não tem bala perdida, tem seu nome, é bala autografada”.
Diante de um tempo em que políticos populistas de direita usam a violência
contra a população negra como forma de ganhar popularidade, agora a carne negra
vale uma tonelada. A polícia agora pode assinar a bala que mata, está autorizada.
Triste realidade. Como não cabe pessimismo em Elza, depois de citar Tupac,
Marielle Franco, Rosa Parks, para destravar a corrente e sair da foice, na
letra ela atesta: “Mas os pretos avançam, Wakanda forever yo!”
Ainda não nos recuperamos totalmente do golpe
e em seguida Elza nos manda outra música que representa o sonho daqueles que
querem um país melhor para todos. “País do Sonho” deveria se tornar um hino na
luta por esse novo país. Mais uma vez, o otimismo prevalece sobre a visão
sombria do momento atual do Brasil.
“Pequena
Memória Para um Tempo Sem Memória” é uma ode à resistência, principalmente àqueles “humilhados, ofendidos, explorados e oprimidos” que sucumbiram e que se
tornaram “sementes nesse chão”. É verdadeiramente uma “história a contrapelo”
no sentido de Walter Benjamin, a história dos vencidos. “E vamos à luta”
Em “Virei o
jogo” Elza Soares representa a filosofia nietzschiana na afirmação da vida,
mesmo diante da dor e da tragicidade da existência humana. “Se vem de não eu
vou de sim, afirmação até o fim” ou então “você é não sou um milhão de sins”. Nietzche
chegou a falar “o que não me mata me fortalece”. Já Elza Soares decretou: “Cara
feia pra mim me fortalece”. Para fechar, “Não Recomendado” trata do
obscurantismo, da censura provocada pelo fundamentalismo religioso, da
homofobia e transfobia.
Chega-se ao
fim de Planeta Fome meio que desnorteado, uma tontura, ainda tentando absorver
o impacto das pancadas. Infelizmente, numa época extrema de intolerância, na
qual as pessoas vivem confortavelmente nas suas bolhas das redes sociais, o
alcance da mensagem de Planeta Fome seja limitado, mas na verdade trata-se de
um clássico histórico, que ajudará aos brasileiros do futuro a entender nós,
brasileiros, podemos enveredar por caminhos perigosos e sombrios.
sexta-feira, 28 de dezembro de 2018
Melhores álbuns de 2018
Antes de apresentar a lista de melhores álbuns de 2018 do Filho do Blues, gostaria de deixar registrado algumas palavras sobre esse ano que chega ao fim. Do início ao fim, foi um ano muito intenso, graças a Deus, de muito trabalho e que culminou com o momento mais feliz e incrível da minha vida, o nascimento da minha filha, Teodora. Portanto, essa lista tem também algo de muito especial pessoalmente, já que esta foi a trilha sonora que me acompanhou por todos esses momentos.
Sobre a lista, o primeiro lugar, pelo conjunto da obra, só poderia ficar com Buddy Guy mesmo. Não apenas pelo seu álbum que fica no topo, The Blues is Alive and Well, mas também pela participação de Guy em outras obras de destaque no ano, como Chicago Plays The Stones, o tributo de lendas do blues para a banda The Rolling Stones, e também a participação no álbum de Playing for Change, com uma versão de uma música sua mesmo, "Skin Deep". No mais, muito blues e uma presença tímida da música brasileira, que teve Elza Soares, Arnaldo Antunes e Cordel do Fogo Encantado como representantes.
Peço desculpas por mudar a forma que a lista era apresentada, normalmente em cinco postagens, com dez discos cada, contendo comentários sobre cada um dos álbuns. Mas esse ano realmente não tive tempo para fazer esse trabalho detalhado. Mas, enfim, a lista está a seguir. Como postagem complementar, irei postar a playlist do Filho do Blues no Spotify com as melhores músicas de 2018, tiradas desses álbuns.
Enfim, que venha 2019!
Grande abraço a todos!
1. Buddy Guy - The Blues is Alive and Well
2. Anthony Geraci - Why Did You Have to Go
3. Spiritualized - And Nothing Hurt
4. Lurrie Bell & The Bell Dynasty - Tribute to Carey Bell
5. Joe Louis Walker, Bruce Katz, Giles Robson - Journeys To The Heart of the Blues
6. Roger C. Wade - The Schoolhouse Sessions
7. Ben Harper & Charlie Musselwhite - No Mercy In this Land
8. Trudy Lynn - Blues Keep Knockin'
9. Bob Corritore & Friends - Don't Let the Devil Ride
10. The Reverend Shawn Amos - The Reverend Shawn Amos Breaks it Down
11. Various Artists - Chicago Plays the Stones
12. Paul Thorn - Don't Let the Devil Ride
13. Billy F. Gibbons - The Big Bad Blues
14. Rockwell Avenue Blues Band - Back to Chicago
15. Breezy Rodio - Sometime the Blues Got Me
16. The Little Red Rooster Blues Band - Lock Up The Liquor
17. Rory Block - A Woman's Soul: A Tribute to Bessie Smith
18. Nick Moss - The High Cost of Living
19. James Harman - Fineprint
20. Colin James - Miles to Go
21. Sean Chambers - Welcome to My Blues
22. Snooky Prior - All My Money Gone
23. Elza Soares - Deus é Mulher
24. Bernard Allison - Let it Go
25. John Clifton - Nightlife
26. Cliff Grant - Life Can Be A Big Struggle/Sweet Loven Woman
27. The Alabama Lovesnakes - III
28. John Akapo - Paradie Blues
29. Playing For Change - Listen to The Music
30. RL Boyce - Rattlesnake Boogie / Ain't Gonna Play Too Long
31. The Reverend Peyton's Big Damn Band - Poor Until Payday
32. HP Lange - Trackin' My Blues
33. Kenny "blues boss" Wayne - Inspired by the Blues
34. Shemekia Copeland - America's Child
35. Myles Goodwyn - Myles Goodwyn and Friends of the Blues
36. Mud Morganfield - They Call Me Mud
37. Curtis Salgado - Rough Cut
38. Tinsley Ellis - Winning Hand
39. Mick Kolassa - Double Standarts
40. David Byrne - American Utopia
41. Celso Salin Band - Mama's Hometown
42. Paul Barry - Blow Your Cool
43. Theotis Taylor - Something Within Me
44. Billy Boy Arnold - Blues Lowdown
45. Cedric Burnside - Benton County Relic
46. Arnaldo Antunes - RSTUVXZ
47. Dave Hole - Goin' Back Down
48. Leon Bridges - Good Thing
49. Tony Joe White - Bad Mouthin'
50. Bob Margolin - Bob Margolin
51. Cordel do Fogo Encantado - Viagem ao Coração do Sol
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segunda-feira, 21 de dezembro de 2015
Melhores Álbuns de 2015 - Parte V
Sem dúvida, o ano de 2015 ficará
marcado na história do blues e da música como o ano em que perdemos B.B. King,
aos 89. O luto do blues, no entanto, será inegavelmente bem mais duradouro.
Originalmente um estilo executado pela comunidade negra norte-americana e
direcionado para a própria audiência negra no início do século XX, foi somente
a partir da década de 60, especialmente impulsionado pela grande evidência dada
ao blues pelas bandas britânicas, que o blues foi apresentado a um público
mundial em escala mundial – e até certo ponto, apresentado para os brancos do
próprio Estados Unidos. A partir daí, apesar de ter sido a base para inúmeros
estilos da música popular, o blues foi perdendo tanto o público consumidor,
seduzido pelos estilos mais modernos, quanto os seus grandes expoentes. Fora os que já haviam partido até então, os
gigantes lendários do blues foram caindo um a um: Sonny Boy Williamson II
(1965), Mississippi John Hurt (1966), Little Walter (1968, Skip James
(1969), T. Bone Walker (75), Howlin’
Wolf (76), Muddy Waters (83), Lightnin’ Hopkins (82), Son House (88), Memphis
Slim (88), Willie Dixon (92), John Lee Hooker (01), sem contar, claro, com
vários outros. Então, em um cenário em que a renovação de grandes nomes no
mainstream é difícil e com a perda inevitável dos ícones remanescentes, a morte
de B. B. King foi muito sentida e lamentada, tanto pelo seu valor humano quanto
pelo seu valor simbólico.
É imerso nesse contexto que o
mundo do blues e da música em geral recebe com grande entusiasmo o novo álbum
de Buddy Guy, uma das últimas lendas vivas do blues, que acaba de completar 79
anos. Born To Play Guitar tem um duplo valor, igualmente importantes. O
primeiro é o valor musical de mais um álbum na carreira desse grande
guitarrista, que influenciou a vida de nomes como Jimi Hendrix, Eric Clapton,
Jimmy Page, Rolling Stones, etc e que mais uma vez conta com várias
participações de peso, tais como Billy Gibbons, da banda ZZ Top, Van Morrison,
Eric Clapton (olha ele aí), Kim Wilson, da banda The Fabulous Thunderbird, e
Joss Stone. O outro é o valor simbólico que pode estar contido na mensagem que
se diz por essas terras tropicais: o blues está vivinho da Silva! Buddy Guy
canta sobre o blues com a propriedade conferida de quem viveu para a música e
toda a tradição desses nomes que já se foram está presente e pode ser sentida
no disco. Além disso, ainda tem uma faixa especial para B.B. King, “Flesh &
Bone”, cantada com Van Morrison, e uma emocionante homenagem a Muddy Waters, na
música que fecha o álbum, “Come Back Muddy”. Buddy Guy já falou em entrevistas
que o último recado dado por Muddy Waters, numa conversa pouco antes de
falecer, foi um apelo bem claro: “keep the damn blues alive”. É a isso que
Buddy Guy tem se dedicado desde então e Born To Play Guitar é uma declaração
apaixonante de amor a um estilo de música, de vida, e, claro, ao instrumento a
que está mais associado.
A faixa que abre o álbum dá o tom autobiográfico
que reaparece em vários outros momentos do disco. Começa com Buddy Guy
acompanhado somente de sua guitarra, mas no decorrer da música vão sendo
acrescidos o piano e a bateria. A letra narra sua ascensão, saindo de Louisiana
para ser reconhecido no mundo todo por causa do blues e da sua guitarra. “Wear
You Out” já é bem mais agressiva, um blues-rock com solos mais vibrantes e a
voz rasgada do convidado Billy Gibbons. A parceria funcionou muito bem, Guy com
sua voz mais limpa e Gibbons apresentando o outro lado. “Back Up Mama” é outra que se destaca, com um
estilo próximo ao Delta blues eletrificado de Chicago e uma letra que mostra a
já clássica malícia sexual bastante presente na tradição do blues “i got a back
up mama, if mama number one is not around”. Puro blues. Mais uma vez, Buddy Guy
executa belos solos, que se alterna com solos de pianos. Em“Too Late” outro
instrumento se insere na equação: Kim Wilson agrega sua intensa gaita e, sem
dúvidas, torna o conjunto ainda mais compacto e poderoso, uma locomotiva a
pleno vapor. As músicas do álbum inclusive estão mais concisas e curtas,
diferentes de outros trabalhos de Guy nos quais algumas das faixas ultrapassam
os sete minutos. Em Born To Play Guitar as mais longas ultrapassam pouco os
cinco minutos, mas dá a sensação de que pouco ou quase nada deixou por dizer.
“Whiskey, Beer & Wine” é mais dançante, um
pouco funky, feita pra festejar, como o próprio nome sugere e relaxar e se ver
livre das preocupações, pois, como Guy diz: “you can fix anything with whiskey,
beer and wine”. Quem irá questionar o velho Guy nessa? Ainda dá tempo para uma homenagem ao “good
ol’ days”. Em “Kiss Me Quick”, Kim Wilson faz novamente um trabalho vigoroso na
gaita. As duas faixas que contam com sua presença são as menores do disco, mas
são talvez as mais intensas. “Crying Out of One Eye” apresenta um conjunto de
metais, que deixa o clima mais soul. A letra é muito interessante, mostrando a
falsidade do sofrimento, enquanto está rindo e saindo por aí. “when you say goodbve you were only crying out
of one eye”. Ótima imagem. “(Baby) You Got What It Takes” é a vez do dueto de Buddy Guy
e Joss Stone, com sua voz sensual.
Depois da sequência de
participações, uma série de Buddy brilhando sozinho com sua guitarra. “Turn Me
Wild” parece ter um tom biográfico em sua relação com o blues e a guitarra. “didn’t learn nothing from a book,
no I never took a leason, when it comes to the blues I do my own kinda of
messin’”. Ao invés de um garotinho que sempre andou na linha, o blues o
deixou como um cachorro vira-lata procurando a toca do coelho. Em “Crazy World”
Buddy Guy deixa um pouco de lado os temas mais tradicionais do blues,
geralmente bem mais regional, para refletir a situação meio insana do mundo na
atualidade, como violência, concentração de renda, fome, e outras das mazelas
da sociedade global. É como o blues saísse do sul norte-americano para ver o
seu reflexo também em esfera mundial. “Smarter Than I Was” tem um riff
constante e a voz de Guy um tanto distorcida e gritantes solos de guitarra.
A parte final é um tributo ao
blues, claro, e a dois gigantes do gênero. “Thick Like Mississippi Mud”, mais
um dos grandes destaques álbum, já começa atestando uma das grandes verdades do
blues: “good whiskey and women can drop you to your kness”. Os momentos mais
emocionantes sem dúvidas ficam para as duas últimas faixas. “Flesh & Bone”,
com a participação de Van Morrison, é dedicada a B. B. King, falecido em maio
desse ano. Segundo Guy, a música já havia sido gravada quando ficou sabendo da
morte do amigo. A letra, com a música no clima religioso, repleta de órgãos e
corais, fala exatamente da mortalidade. “This life is more than flesh and bone / find out now before you gone /
when you go your spirit lives on / this life is more than flesh and bone”, diz
o refrão. Por fim, “Come Back Muddy” é uma tocante e sincera música
saudosa de Muddy Waters, falecido em 1983. A delicada canção, acompanhada pelo
violão e piano, mostra a falta que Waters faz tanto artisticamente (“come back
Muddy, Lord knows you can’t be replaced”) quanto pessoalmente (“come back
Muddy, man I sure miss your face”).
Born To Play Guitar não pode ser
visto como mais um número no catálogo extenso e bem sucedido de Buddy Guy,
vencedor de vários Grammys (provavelmente ganhará mais um agora). É muito mais
do que isso; é maior do que o próprio Buddy Guy ou qualquer outro; é uma
reafirmação não só de um gênero musical, da vida de um artista ou de um
instrumento específico: é a reafirmação da contribuição e dedicação de todos os
que vieram antes e já se foram, dos que ainda estão por aí e dos que ainda
virão. Acima de tudo, é a constatação de que o blues está, sim, vivo pra
caralho, viu Muddy (e todos os outros)? Podem descansar em paz.
Diante disso, Já É pode entrar na lista de um dos melhores
trabalhos da carreira de Arnaldo Antunes. A sua já conhecida e qualidade lírica
e poética de grande compositor, que sempre esteve presente nos seus discos,
uniu-se mais uma vez com uma variedade sonora bastante interessante, que estava
ausente nos últimos dois trabalhos, que tinham uma proposta bem limitada e
definida. Então, quando eu digo e reafirmo que Arnaldo Antunes é o melhor
compositor brasileiro da atualidade, já posso ouvir a resposta: “Já É”.
O que realmente torna I Don’t Prefer No Blues um clássico
atemporal do blues é a performance e a estrela de Leo “Bud” Welch: blues é
emoção, sentimento, autenticidade, o momento; e é tudo isso que exala durante
os trinta e cinco minutos da música desse senhor que passou tocando o blues no
anonimato sua vida inteira. Ainda bem que agora ele está tendo a oportunidade
de levar sua música ao mundo.
A Mulher do Fim do Mundo é um dos
discos mais interessantes do ano em diversas esferas; musicalmente, o álbum
transita de forma muito natural e elegante entre diversos gêneros musicais,
como o samba, claro, o rock, o eletrônico, dentre outros; e, principalmente, o
âmbito lírico não fica submisso ao campo sonoro e, por isso, A Mulher do Fim do
Mundo é um excepcional fruto do seu próprio tempo, com letras bastantes
críticas sobre as transformações, desafios, problemas e retrocessos que
testemunhamos diariamente na sociedade brasileira. As temáticas são amplas e
vão desde a violência doméstica, a violência policial nas periferias, questões
de gênero como feminismo e sexualidade. Ou seja, Elza ainda tem muito o que
dizer!
05. Tobias Jesso Jr. - Goon
O estreante Tobias Jesso Jr. é a revelação do ano. As
belíssimas músicas construídas ao piano em Goon o gabaritou, por exemplo, a ser
um dos colaboradores do novo álbum de Adele, com a música “When We Were Young”.
Mas Goon prova que Tobias Jesso Jr. é um compositor versátil e craque no
quesito de melodias.
06. Johnny Hooker - Eu Vou Fazer uma Macumba Pra Te Amarrar,
Maldito!
Johnny Hooker é um artista que
transitava já há algum tempo pela cena underground de Recife, mas aos poucos
foi conquistando cada vez mais espaço com participações em trilhas sonoras,
seja de filmes, como Tatuagem, com a música “Volta”, ou novelas como Babilônia
e Geração Brasil, com as músicas “Amor Marginal” e “Alma Sebosa”. Com Eu Vou
Fazer uma Macumba Pra Te Amarrar, Maldito!, Johnny Hooker recebeu aclamação
nacional e participou dos principais programas de auditório da televisão brasileira.
O lirismo que transborda de Hooker é impressionante.
Depois do drama vivido, Walter
Trout acaba por nos entregar o melhor álbum de sua carreira. Claro que a carga
emocional tem um impacto profundo nas músicas e as fazem ter uma conotação
ainda mais forte. Mas é a honestidade que faz com que Trout consiga nos
transportar um pouco que seja para sua vida. As cicatrizes da batalha são as
lições que ele aprendeu em sua jornada, as quais ele consegue repassar um pouco
delas para nós, ainda que não passemos pelo drama que ele passou. Um drama
pessoal não é o suficiente para um bom álbum. Pode ser mais tentador do que
parece tentar esconder profundas experiências pessoais e espirituais por trás
de clichês. E definitivamente não é isto que Walter Trout faz em Battle Scars.
Gerry Hundt’s Legendary One-Man Band é uma viagem pelo tanto
pelo universo quanto pelas habilidades musicais de Gerry Hundt, experimentando
ao máximo para levar a si mesmo até o limite. Apenas o fato de uma pessoa só
gravar ao vivo um disco já é surpreendente. No entanto, o que é incrível mesmo
é que ele consiga fazê-lo tão bom e divertido. Com certeza, Barney Stintson, da
série norte-americana How I Met Your Mother, soltaria seu jargão clássico:
legen... wait fo it... dary!
09. David Michael Miller - Same Soil
David Michael Miller está numa
trajetória crescente na sua carreira. Same Soil é o segundo disco desse
guitarrista e, desde o título, passando pela capa até às músicas propriamente
ditas, funciona como uma celebração dos estilos de raiz da música americana,
especialmente o blues, gospel e soul. Um som vibrante do início ao fim.
Parte II 39 a 30
Parte III 29 a 20
Parte IV 19 a 10
Marcadores:
2015,
Arnaldo Antunes,
Buddy Guy,
David Michael Miller,
Elza Soares,
Gerry Hundt,
Johnny Hooker,
Leo Welch,
Melhores Álbuns de 2015,
Tobias Jesso Jr.,
Walter Trout
sexta-feira, 11 de dezembro de 2015
Resenha de Elza Soares - A Mulher do Fim do Mundo
O mundo da
música é bastante surpreendente e escolher escrever sobre ele é uma tarefa pode
à qualquer momento nos colocar em algumas situações inimagináveis. Explico: se
me perguntassem quando iniciei o Filho do Blues que escreveria uma resenha
entusiasmada de um álbum de Elza Soares eu provavelmente, incrédulo, iria
sorrir desdenhosamente (mais por ignorância minha do que por falta de méritos
da sambista de 78 anos, mas como não fazia parte da minha esfera musical, nunca
cheguei a dar muito valor ou atenção). Pois o mundo da música, amigos, nos
prega peças (ou lições) deveras curiosas. É com uma satisfação redobrada que
escrevo hoje a resenha do último trabalho da cantora Elza Soares, chamado A Mulher do Mundo. Diante da correria de fim de ano, tentando organizar a
lista de melhores álbuns do ano e fazendo uma derradeira busca por novidades
que possa ter deixado passar, um amigo me indicou este álbum com ótimas
referências. Como nos últimos anos ampliei bastante meu nicho musical, fui
conferir. E mais uma surpresa: A Mulher do Fim do Mundo é um dos discos mais
interessantes do ano em diversas esferas; musicalmente, o álbum transita de
forma muito natural e elegante entre diversos gêneros musicais, como o samba,
claro, o rock, o eletrônico, dentre outros; e, principalmente, o âmbito lírico
não fica submisso ao campo sonoro e, por isso, A Mulher do Fim do Mundo é um
excepcional fruto do seu próprio tempo, com letras bastantes críticas sobre as
transformações, desafios, problemas e retrocessos que testemunhamos diariamente
na sociedade brasileira. As temáticas são amplas e vão desde a violência doméstica,
a violência policial nas periferias, questões de gênero como feminismo e
sexualidade. Ou seja, Elza ainda tem muito o que dizer!
A história do disco já inicia de forma curiosa, pois mesmo com décadas de carreiras e discos lançados, A Mulher do Fim do Mundo é o primeiro disco de Elza Soares com músicas totalmente inéditas (de outros compositores). E o álbum já começa em grande estilo, com o poema “Coração do Mar”, de Oswald de Andrade, cantada à capela, que já é emendada com o samba tradicional que dá título ao álbum, “A Última Mulher do Mundo”, uma Ode à Avenida, em que Elza confirma: “Mulher do fim do mundo eu sou e vou até o fim cantar”. De fato, a música vai entrando num fade out e ela continua cantando até o fim. A faixa seguinte, “Maria da Vila Matilde” retrata a violência doméstica e os esforços para escapar deste ciclo pernicioso, com Elza dizendo várias formas de manter afastado o agressor, como ligar para o 180, colocar o cachorro pra cima dele, e, por fim, Elza canta, quase como um alívio, uma libertação: “cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”.
“Luz Vermelha”
também tem uma letra reflexiva e cheia de imagens de periferia, tiroteios, que
remetem a solidão e ao enclausuramento de uma metrópole como São Paulo, e aqui
o samba já se encontra com a guitarra elétrica, fazendo uma mistura bem
interessante, com rap e algo parecido com punk. O tom apocalíptico é resumido
quando Elza, ou o anão, atesta: “bem que o anão me contou que o mundo vai
terminar num poço cheio de merda”. Inclusive, papas na língua é coisa que Elza
Soares realmente não tem, a começar pelo título da faixa seguinte, “Pra Fuder”,
com imagens, por sua vez, bem luxuriosas, como “unhas cravadas induzem latejo”.
Em “Benedita”
a temática volta a ficar séria, com a sonoridade migrando frequentemente, indo
e voltando, enquanto Elza fala das frequentes vítimas de balas perdidas pelas
periferias Brasil afora e do tráfico de drogas. “Benedito é uma fera ferida,
traz na carne uma bala perdida”.
Na faixa
“Firmeza?!”, enquanto retrata um diálogo típico da periferia, o destaque vai
para Elza se aventurando um pouco mais no rap com um saxofone no fundo bem
interessante. O tango mórbido e póstumo de “Dança” mantém o ritmo interessante,
bem como “Canal”, com traços meio que orientais e referências históricas
interessantes, como o “brilho do Farol de Alexandre”. O caminho é mais
solitário em “Solto”, que contém uma orquestra, enquanto Elza mais fala
do que canta. Para finalizar, “Comigo” resgata inicialmente o barulho de
guitarras, mas de súbito tudo some e Elza volta a cantar à capela, tal qual o
início, soltando um dos mais belos versos do disco: “levo minha mãe comigo pois
deu-me seu próprio ser”.
E é assim que
finaliza A Mulher do Fim do Mundo, um silêncio, seguido de mais silêncio, e,
depois, lá no fundo, ainda ressoando a voz de Elza Soares, afinal, como ela
mesma disse: “eu vou cantar até o fim”. Sinta-se à vontade. E perdão pela
injustiça.
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