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terça-feira, 17 de setembro de 2019

Resenha de Elza Soares - Planeta Fome



Elza Soares é um ícone da cultura nacional, seja como símbolo feminino de resistência diante de uma vida cheia de sofrimento e reveses, seja como uma das maiores intérpretes da música brasileira. Desde cedo, Elza travou lutas típicas de uma mulher negra da periferia, como a fome, violência doméstica e sexual, tendo sido mãe precocemente, aos doze anos de idade, para logo em seguida padecer da maior dor de todas: aos quinze anos, perdeu seu segundo filho que sucumbiu à fome.
Pois bem, mesmo diante de todos os percalços, que fariam com que qualquer pessoa normal pensasse duas vezes antes de continuar, Elza tentou a carreira musical, inscrevendo-se no concurso de música do programa de Ary Barroso, na Rádio Tupi, em 1953. O que se passou no programa tornou-se icônico para a biografia da cantora. Maltrapilha e com jeito humilde de falar, Ary perguntou a ela: - “de que planeta você veio?” Elza respondeu: - “Do mesmo planeta que o senhor, seu Ary. Do Planeta Fome”.
Desde então, muita coisa se passou. Elza Soares, a Mulher do Fim do Mundo, tornou-se um ícone da nova geração, graças a parcerias exitosas que conectariam a octogenária a um novo público. Essa nova guinada veio em 2015, com o aclamado A Mulher do Fim do Mundo, primeiro álbum totalmente com músicas inéditas. O tom altamente crítico, reflexivo e enérgico, teve continuidade com o trabalho Deus é Mulher, de 2018. Agora, no topo de sua carreira, Elza Soares resgata o episódio que se sucedeu 66 anos atrás no programa de Ary Barroso, lançando seu novo álbum, Planeta Fome. Culminância dessa nova fase da carreira da cantora, Planeta Fome é um trabalho ousado do início ao fim, que mostra uma Elza empoderada, destemida, altiva diante de um tempo em que, como ela diz numa das letras, “lutar por seu direito é um defeito que mata”. Aos 89 anos, ela dá uma tapa nos “revolucionários Che Guevara de sofá” e é simplesmente uma – se não a maior – porta-voz da música de protesto em relação à fase autoritária, fascista, racista, homofóbica, exclusiva e assassina na qual o Brasil decidiu mergulhar de cabeça nos últimos anos. Ela conseguiu absorver o zietgiest do Brasil contemporâneo, não somente num tom pessimista, mas também dando impulso na continuidade da luta por um “Brasil do Sonho”.
A posição de Elza fica clara já pela capa do disco, assinada pela transexual e ativista LGBT Laerte, traduzindo um pouco o tom caótico da nossa sociedade. A diversidade de ritmos e sons também dá um aspecto fragmentado e caótico, que, ainda assim, mantém a unidade conceitual que funciona perfeitamente do início ao fim, ora mais intensa, ora mais calma.




A lapada começa com “Libertação”, com participação de BayanaSystem e Virgínia Rodrigues. Aqui Elza já dá seu recado: a Mulher do Fim do Mundo não vai sucumbir. “Menino”, de composição da própria Elza, é um apelo empático aos jovens que passam privação, mas que não se voltem contra o próximo para gerar mais violência. Só assim para acabar com o ciclo que infelizmente muitos jovens estão inseridos e que não conseguem se libertar.
A faixa seguinte “Brasis” é uma das mais intensas. As referências nas letras são muitas e parece que a cada vez que você ouve, percebe ainda algo novo. Fala sobretudo do Brasil desigual, um que “é próspero” e do outro que “não muda”, um que “investe” e outro que “suga”. Tem um Brasil que “soca” e outro que “apanha”.  Ao mesmo tempo, esses diferentes Brasis pedem a mesma coisa: no fim do ano estamos todos pedindo paz, saúde, trabalho e dinheiro. O mais genial dessas letras críticas é que elas são verdadeiramente nacionalistas e patrióticas. Exaltam o país, o seu povo, a sua diversidade, impulsiona o Brasil pra frente, pra ficar de cabeça em pé, mas ele teima em ficar para trás, cabisbaixo.





“Blá Blá Blá” é uma das construções musicais mais interessantes e imprevisíveis, que, somada a uma letra ácida, faz dela um dos pontos centrais do disco. É a história de alguém que quer ficar, mas que só dão motivo para querer ir embora. Entre as estrofes à machadadas, como diria Nietzsche, a vinheta de “Me Dê Motivo”, de Tim Maia. É o Brasil à venda pelos patriotas, que vende, aluga e cede as terras para a América do Norte – nomeadamente os Estados Unidos. É o Brasil que passa reformas que prejudicam os trabalhadores e os mais pobres, dizendo que se não o fizer o país irá quebrar. É a ideologia no sentido marxista mais claro: as ideias da classe dominante se impondo nas classes dominadas.
A força dessa ideologia se torna ainda mais explícita na genial “Comportamento Geral”. Quando vemos que esta é uma composição de Gonzaguinha, de 1973, percebemos a intensidade dessa ideologia e que, na verdade, pouca coisa mudou. A letra fala do cidadão comum, aquele que se sacrifica com um sorriso no rosto, o famoso capitalista pobre, que “deve rezar pelo bem do patrão e esquecer que está desempregado”. São cortes na educação, fim de direitos trabalhistas, fim da aposentadoria, congelamento de salários, mas que “deve aprender a baixar a cabeça e a dizer sempre muito obrigado”. Não é anacronismo. Essa era a realidade do Brasil da década de setenta, em plena linha dura da ditadura. No Brasil de 2019 seguimos a mesma linha, sendo que, pior, de forma mais consentida. “Você merece”.



Mesmo quando Elza deixa de lado claramente os temas políticos, as letras continuam a traduzir a desordem, o caos e a contradição, como quando ela diz, na faixa “Tradição”, para desconsiderar a razão, desobedecer o coração para descontinuar a tradição. “E na bagunça dessa vida, se jogue em meio à confusão”. A acústica “Lírio Rosa” parece perdia em meio a essa miscelânea, mas mostra o lado mais romântico de Elza.
“Não tá mais de graça” tem uma das letras mais impactantes, pois faz referência a uma outra música de Elza Soares, “A Carne”, que diz que a carne negra é a mais barata do mercado. Pois bem, agora mudou. Não, o negro geme ainda numa poça de sangue, mas a diferença é que agora ela não está mais de graça, “o que não valia nada agora vale uma tonelada, não tem bala perdida, tem seu nome, é bala autografada”. Diante de um tempo em que políticos populistas de direita usam a violência contra a população negra como forma de ganhar popularidade, agora a carne negra vale uma tonelada. A polícia agora pode assinar a bala que mata, está autorizada. Triste realidade. Como não cabe pessimismo em Elza, depois de citar Tupac, Marielle Franco, Rosa Parks, para destravar a corrente e sair da foice, na letra ela atesta: “Mas os pretos avançam, Wakanda forever yo!”
 Ainda não nos recuperamos totalmente do golpe e em seguida Elza nos manda outra música que representa o sonho daqueles que querem um país melhor para todos. “País do Sonho” deveria se tornar um hino na luta por esse novo país. Mais uma vez, o otimismo prevalece sobre a visão sombria do momento atual do Brasil.




“Pequena Memória Para um Tempo Sem Memória” é uma ode à resistência, principalmente àqueles “humilhados, ofendidos, explorados e oprimidos” que sucumbiram e que se tornaram “sementes nesse chão”. É verdadeiramente uma “história a contrapelo” no sentido de Walter Benjamin, a história dos vencidos. “E vamos à luta”
Em “Virei o jogo” Elza Soares representa a filosofia nietzschiana na afirmação da vida, mesmo diante da dor e da tragicidade da existência humana. “Se vem de não eu vou de sim, afirmação até o fim” ou então “você é não sou um milhão de sins”. Nietzche chegou a falar “o que não me mata me fortalece”. Já Elza Soares decretou: “Cara feia pra mim me fortalece”. Para fechar, “Não Recomendado” trata do obscurantismo, da censura provocada pelo fundamentalismo religioso, da homofobia e transfobia.
Chega-se ao fim de Planeta Fome meio que desnorteado, uma tontura, ainda tentando absorver o impacto das pancadas. Infelizmente, numa época extrema de intolerância, na qual as pessoas vivem confortavelmente nas suas bolhas das redes sociais, o alcance da mensagem de Planeta Fome seja limitado, mas na verdade trata-se de um clássico histórico, que ajudará aos brasileiros do futuro a entender nós, brasileiros, podemos enveredar por caminhos perigosos e sombrios.
  




domingo, 20 de setembro de 2015

Resenha de Arnaldo Antunes - Já É


Inicio a resenha declarando que Arnaldo Antunes é o melhor compositor brasileiro da atualidade. Essa constatação pode ser óbvia para muita gente, mas caso a participação na fase de ouro do Titãs e uma carreira de dezesseis álbuns, dentre os quais estão clássicos como O Silêncio, de 1996, Um Som, de 1998, Paradeiro, de 2001 e Saiba, de 2004, não seja argumento suficiente, talvez a qualidade individual de músicas como “O Silêncio”, “Música Para Ouvir”, “As Árvores”, “Socorro”, “Atenção”, “Essa Mulher”, “Se Tudo Pode Acontecer”, “Nossa Casa”, “Saiba”, “A Casa É Sua” possa ajudar a reconhecer a veracidade da polêmica declaração. O estilo excêntrico de Arnaldo Antunes, associado ao domínio completo das melodias e à sua formidável qualidade e criatividade poética, que sempre fala das coisas mais comuns da forma mais incomum possível, faz com que seus trabalhos sejam sempre poços profundos nos quais deposita todo seu gênio, sua visão de arte, de poesia, da vida, além da sua própria visão de mundo. Surge agora uma nova oportunidade para quem ainda resiste à ideia inicial, ou seja, a de que Arnaldo Antunes seja o melhor compositor brasileiro da atualidade. O lançamento de Já É, nome do décimo sexto disco da carreira solo, marca um distanciamento do som apresentado nos seus dois últimos trabalhos de estúdio, Iê, Iê, Iê, de 2009, e Disco, de 2013, nos quais Arnaldo optou por um estilo enraizado no rock, especialmente o rock dos anos 50 e 60. Já É pode soar, portanto, como um “retorno à raiz” para Arnaldo Antunes, mas a questão é: qual seria a raiz para um artista que sempre demonstrou não ter raízes? Ou seja, para Arnaldo Antunes, a raiz é flertar com um som e um estilo em um momento, para logo em seguida experimentar outros estilos que melhor se adaptem à sua ideia original. É exatamente essa variedade sonora que está presente em Já É.


                A faixa que abre o disco, “Põe Fé Que Já É”, que inspira o título do trabalho e foi escolhida para a primeira música de trabalho com um vídeo bem interessante, é dançante e animada e mostra uma postura bem enérgica e positiva diante da vida, afinal, “se você tá feliz, se você tá contente, se você mete a cara, se você mete o dente, (...) se o momento é preciso, o desejo é propício (...) põe fé que já é”. A música seguinte, “Antes”, é uma das que apresenta sonoridade mais interessante e diferente, com arranjos bem colocados. Na letra, Arnaldo Antunes faz algo como uma hierarquia de sensações, atitudes e sentimentos, antes de afirmar rejubilante no refrão “e depois alegria, e depois alegria e gratidão”. “Naturalmente, naturalmente” é a primeira das várias parcerias com Marisa Monte e Dadi Carvalho, uma canção leve, bonita e simples, que combina perfeitamente com a naturalidade sugerida na letra.

Arnaldo Antunes tem um interesse em abordar temas e emoções contraditórias, inconvenientes e/ou negativas.  Ele usou o humor para descrever a inveja e os seus respectivos efeitos em “Invejoso”, do disco Iê Iê Iê, de 2009. Agora quem vai para o divã, ou melhor, para a mesa de trabalho é a mágoa. Você pode ter ouvido várias músicas que tratam da mágoa, mas poucas mexerão com você como Arnaldo Antunes faz em "Se você nadar", com uma pegada mais forte do que as anteriores, principalmente se a carapuça lhe servir. Utilizando-se de imagens e metáforas para lidar com os efeitos da mágoa (“os micróbios gostam de água parada”), Arnaldo Antunes foge do lugar-comum ou da sensação de auto-ajuda. Na verdade, várias músicas de Já É apresentam esse lado mais esperançoso e afirmativo diante dos desafios e perdas da vida do que o lado sombrio e depressivo. Mesmo nas canções tristes, há um fio de esperança, uma busca incessante por uma saída da crise, do desespero. "Peraí, repara" é outra parceria de Arnaldo Antunes, Marisa Monte e Dadi Carvalho (dessa vez Marisa Monte realmente divide os vocais com Arnaldo), com jogos de palavras e sonoridades com as palavras com o prefixo "para". É incrível como a voz de Arnaldo Antunes e a de Marisa Monte se unem como se fossem feitas uma para a outra. Não surpreende a grande quantidade de parceria entre os dois.



"Óbitos" marca a volta de Arnaldo Antunes com o reggae, já trabalhado anteriormente pelo cantor em, por exemplo, "Pare o Crime (Stop the Crime)”, do álbum Um Som, de 1998, na qual ele faz um apelo para o fim da violência urbana. Arnaldo Antunes volta à temática da violência, dessa vez focando suas críticas nos burocratas e legisladores cujas leis matam sem a necessidade de empunhar eles próprios arma nenhuma. "eles não pegam em armas, só em canetas e papéis, mas matam mais com suas leis, que atiradores cruéis, Estatutos de escorpiões, despachos de cascavéis, cobertos de suas razões dos cabedais até os pés". Depois de tudo só sobra, como diz a letra, “lágrimas, lágrimas nos funerais”. Já disse aqui que ninguém fala de temas banais da mesma forma que Arnaldo Antunes. Em "O meteorologista", um grande exemplo disso, o humor é utilizado como recurso lírico para abordar o amor. Arnaldo Antunes, com toda sua sagacidade e genialidade, brinca com um erro do metereologista, que falou que o fim de semana seria de sol, mas na verdade foi com frio e chuva. A partir daí ele diz que não quer férias no Rio de Janeiro, Bahamas ou Bahia; só quer férias na Sibéria e Alaska para ficarem juntos na cama. Divertida e bela.

 "Dança", mais uma parceria com Marisa Monte, é uma balada no violão utilizando-se de belíssimas e inusitadas imagens poéticas. As rimas são tão naturais que rimar flamboyant com manhã não parece nem um pouco forçado e a naturalidade e o encaixe melódico funcionam perfeitamente. Em seguida, Arnaldo Antunes recorre ao samba na faixa "Saudade farta" com mais uma bela letra sobre as lamúrias e a necessidade de conformar-se diante de um amor impossível. "As estrelas sabem" é uma bela balada só Arnaldo Antunes com o acompanhamento de um piano e um violino. A letra contém talvez a melhor construção de imagem poética do disco: "as estrelas pelo chão, são pedaços de carvão, sem o seu sorriso". Belo. As estrelas continuam no foco em "As estrelas cadentes", uma das melhores melodias e letras do trabalho inteiro, que vê o fim de um amor e aponta para o futuro com esperança. Só Arnaldo Antunes mesmo para sair com uma estrofe como essa: "para a chuva molhar o deserto, e as correntes tomarem o rumo certo, das lágrimas caídas nos vasos regados nascerem flores, e as abelhas beberem o pólen delas, e as lagartas comerem as folhas delas, transformando em vida nova todos os velhos amores".

"Na fissura" é um rock que trilha o caminho dos últimos trabalhos de Arnaldo Antunes, composta em conjunto com os membros de sua banda, Betão Aguiar e Chico Salém."Azul e prateado" é talvez a única que não brilhe por si mesma, mas ainda assim mantém o nível interessante. Nas duas últimas faixas, "Só Solidão", que se encaixaria perfeitamente no álbum Acústico, e "Aqui onde está", o clima contemplativo ganha força.

Diante disso, Já É pode entrar na lista de um dos melhores trabalhos da carreira de Arnaldo Antunes. A sua já conhecida e qualidade lírica e poética de grande compositor, que sempre esteve presente nos seus discos, uniu-se mais uma vez com uma variedade sonora bastante interessante, que estava ausente nos últimos dois trabalhos, que tinham uma proposta bem limitada e definida. Então, quando eu digo e reafirmo que Arnaldo Antunes é o melhor compositor brasileiro da atualidade, já posso ouvir a resposta: “Já É”.