O
guitarrista e cantor de gospel, Blind Willie Johnson, pertence à primeira
geração do blues, chamado de “Prewar Era”, ou seja, anterior à Segunda Guerra
Mundial, e também sendo conhecido como “Classic Years”, que compreende o
período de 1920 até 1932. Muitos tiveram o primeiro contato com a obra de Blind
Willie Johnson apenas a partir do documentário de 2003, The Soul Of A Man, dirigido
por Wim Wenders, da série The Blues, produzida por Martin Scorsese. Willie
Johnson, nascido no Texas, em 1897 e do qual pouco se sabe sobre a sua pessoal
além de depoimentos pessoais muitas vezes contraditórios – de amigos e
conhecidos, sua curta obra e seu obituário, este cego cantor de rua foi um dos
principais expoentes desse período que delineou bases essenciais para a
evolução do estilo blues para os anos seguintes. Sua carreira musical, em
termos de gravação, foi curta e meteórica, produzindo, no entanto, alguns dos
maiores clássicos de dois gêneros musicais, o blues e o gospel (ele é
considerado mais como gospel, apesar de ter tido uma profunda influência no
blues). Willie Johnson, inclusive, foi quem melhor uniu esses irmãos
briguentos, mas que não conseguem viver muito separado um do outro. Entre 1927
e 1930, Blind Willie Johnson gravou 30 músicas pela Columbia Records. E é isso,
fim da história. Bem, possivelmente esse seria realmente o fim da história se
dentre aquelas trinta canções não estivessem, por exemplo, “Motherless Children
Have a Hard Time”, “Dark Was The Night-Cold Was The Ground”, “Soul Of A Man”,
“Nobody’s Fault But Mine”, “Jesus Is Coming Soon”, dentre várias outras que se
transformaram em grandes clássicos, tanto para a música gospel quanto para o
blues. Depois da piora da Grande Depressão, em 1930, Willie Johnson abandonou a
carreira musical e provavelmente se tornou um pastor, em Beaumont, Texas. Após
um incêndio em sua casa e sem ter para onde ir, Willie Johnson e sua esposa
tiveram que dormir sob as cinzas, onde acabou morrendo em 1945 de pneumonia, após
sua entrada no Hospital ter sido recusada por ser cego.
É exatamente a
vida e a obra desse cantor de rua cego que é celebrada na coletânea God Don’t
Never Change: The Songs of Blind Willie Johnson, projeto dirigido por Jefferey
Gaskill no decorrer de mais de uma década, que conta com a participação de
grandes nomes da música atual, como Tom Waits, Lucinda Williams, Derek e Susan
Tedeschi, The Blind Boys of Alabama, dentre outros. Blind Willie Johnson foi,
por definição, um porta-voz do divino, do eterno, do espiritual. E esse grupo
de artistas selecionados para o projeto entendeu isso talvez melhor do que o
próprio Johnson, resultando, sem dúvida, em uma obra-prima desse gênero de
coletânea. Na maioria das vezes, um projeto que usa muitos artistas diferentes
para regravar uma obra específica fragmenta-se em pedaços de gravações isoladas
umas das outras. Não há unidade. É como um seminário na Universidade em que um
grupo divide um capítulo para cada pessoa, cada um estuda só o seu, apresenta
sua parte e pronto. God Don’t Never Change foi um projeto no qual cada um dos
indivíduos envolvidos sabia exatamente a dimensão, o significado histórico e
emocional da obra em questão. A essência da obra de Willie Johnson está sempre
presente, ou seja, Deus, o divino, não importa quem esteja empunhando os
instrumentos e cantando ao microfone; a áurea divina, congregacionista, sem
mencionar a qualidade técnica, permeia toda a obra. A grande variedade de
artistas e, por conseguinte, de releituras, acabou sendo um elemento enriquecedor
ao invés de causar uma fragmentação da obra. Outro fator digno de nota é a
ampla participação feminina no álbum: das 11 faixas, 4 são lideradas por homens
(Tom Waits fica a cargo de duas; The Blind Boys of Alabama com um e Luther
Dickinson com a outra) e as 7 restantes são lideradas por mulheres (Lucinda
Williams fica com duas, Susan Tedeschi recebe o acompanhamento de seu esposo,
Derek Trucks, Cowboy Junkies, Sinéad O’Connor, Maria McKee e Rickie Lee Jones
ficam com uma cada) e mesmo nas faixas que não são dominadas pelas mulheres,
sua presença está sempre ali nos corais. Apesar de poder soar estranho para uma
obra em homenagem a um cantor solo dono de uma das vozes mais graves da música,
quando lembramos que muitas de suas gravações foram acompanhadas por sua
esposa, Willie B. Harris, a predominância feminina é totalmente compreensível e
muitíssimo bem vinda.
A
primeira contribuição de Tom Waits é a faixa de abertura, “The Soul of A Man”;
sem dúvida, dentre as vozes disponíveis no “mercado”, Tom Waits é a escolha
natural e a que mais se aproxima à de Willie Johnson e seria fácil apenas
imitar a versão original de Johnson. No entanto, Waits deu uma acelerada no
ritmo da música, tornando-se um daqueles pastores que colocam a congregação
abaixo, enquanto a marcação é feita pelas palmas que remetem à congregação
religiosa, recurso presente em várias outras faixas. Poucos conseguiram
penetrar tanto na alma humana como na letra dessa música e ainda assim sair de
lá sem saber o que é a alma humana. Na sua segunda contribuição, “John The
Revelator”, Tom Waits parece renovado, resgatando a voz de um cantor de rua que precisa que sua voz alcance o máximo de pessoas possível; para mim, pessoalmente, o grande desafio era encontrar
a honestidade e profundidade espiritual e religiosa para encarnar um
tradicional cantor gospel, sobretudo Blind Willie Johnson, especialmente para
alguém, tal qual Tom Waits, que não está preso aos limites da arte e gosta de
vagar por temas delicados e, por vezes, contraditórios com a religião; para
alguém que cantou em “don’t you know there ain’t no devil that’s Just God when
he’s drunk”, minha preocupação era justificada, já que a parcela de sinceridade
e profundidade é tão importante no conceito e na obra de Blind Willie Johnson.
O resultado é que pela transformação tão grande em Tom Waits e não abandonando
seu estilo tradicional, parece que ele pode cantar gospel e espirituais agora o
resto da carreira, mantendo seu estilo gutural e underground. “John The
Revelator”, a tradicional música gospel de pergunta e resposta com referências
da Bíblia, é a prova disso.
Quem
também ficou com duas faixas foi Lucinda Williams, soando incrível em cada uma
delas. O estilo de slide, tradicional de Willie Johnson está presente em vários
momentos do álbum, mas é Williams que consegue fazê-lo de forma magnífica. A
primeira é “It’s Nobody’s Fault But Mine” e a segunda é a faixa que dá título
ao álbum, “God Don’t Never Change”. Lucinda Williams brilha igualmente em
ambas. Derek Trucks e Susan Tedeschi ficaram encarregados de “Keep Your Lamp
Trimmed and Burning”; inclusive, na original, de 1928, Willie Johnson divide os
vocais com sua esposa, Willie B. Harris. Na apocalíptica “Jesus Is Coming
Soon”, sobre o desastre da gripe espanhola de 1918, que matou em torno de 5%
das pessoas em todo o mundo, a banda canadense Cowboys Junkies conta com a
participação mais especial de todas, o próprio Blind Willie Johnson. A música
começa com um trecho da gravação original, gravada em 1928; no refrão, essa
versão original retorna, mas agora acompanhada pela banda completa. O
tradicional e o moderno. Absolutamente incrível.
É
difícil escolher qual seria a melhor faixa do álbum, mas sem dúvida uma delas
teria que ser a belíssima e tocante “Mother’s Children Have a Hard Time”,
tocada por The Blind Boys of Alabama; o conjunto, a letra, a música, a harmonia
das vozes, tudo faz com que a música inteira causa arrepios emocionantes. O desespero de um filho sem mãe está
presente em cada um do Blind Boys of Alabama quando cantam: “Motherless
children have a hard time, mother's dead They'll not have anywhere to go,
wanderin' around from door to door Have a hard time” Com Sinéad O’Connor, em
“Trouble Will Soon Be Over”, a pesada carga emocional permanece nas alturas. Poucas
preces soam tão poderosas quanto essa música. Luther Dickson se junta a banda
de pífano Rising Star Fife & Drum Band e traz o som da África Ocidental
junto com eles para tocar “Bye and Bye I'm Going To See The King”. Maria McKee se destaca na versão de “Let Your
Light Shine On Me”. Das 11 músicas, a única na qual a equação não funcionou,
infelizmente, foi em “Dark Was The Night-Cold Was The Ground”, com Rickie Lee
Jones; o motivo é simples: ao vocalizar, tentar cantar na faixa instrumental
mais clássica de Willie Johnson, ela acabou retirando toda sua magia e mística,
que são os incríveis e belíssimos solos de slide, absolutamente intraduzíveis
para qualquer língua falada que seja. Mas, em relação aos outros companheiros
no projeto, Rickie Lee Jones ficou certamente com a missão mais difícil de
todas, pois mexer na música que está viajando pelo Universo abordo do The
Voyager não é fácil.
Uma
publicidade feita pela Columbia Records nos anos iniciais da carreira meteórica
de Blind Willie Johnson dizia: “Hear Blind Willie Johnson spread the light of
old-time faith”; God Don’t Never Change: The Songs of Blind Willie Johnson é
mais do que uma simples coletânea para celebrar a carreira de um artista já
morto; é mais do que apenas preservação de um legado histórico; é muito mais do
que um golpe de publicidade, do que a reunião de artistas famosos para vender
um álbum. Se for verdade o que dizem que a música é uma janela para Deus; bem,
então God Don’t Never Change: The Songs of Blind Willie Johnson é a uma das janelas
mais belas e iluminadas que foram abertas na música.
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