Há algo de
muito peculiar no blues em relação aos outros gêneros musicais: parece que ele
vai ficando melhor com a idade. Alguém que carrega o peso dos anos nas costas,
o acúmulo de experiências, as seguidas perdas e conquistas, aparentemente canta
o blues com mais propriedade do que os mais jovens (claro, não chega a ser uma
regra, seria, talvez, mais uma tendência do que uma certeza). Portanto, não é
tão anormal assim alguém iniciar a carreira no blues com mais de cinquenta,
sessenta anos. Leo Welch, por exemplo, lançou seu primeiro álbum com mais de
oitenta anos. Outro caso, de quem vamos tratar nesta resenha, é George
Bisharat, um professor emerito de Direito Criminal, da University of California Hastins College
of Law, que, aos 59 anos, adotou o nome de Big Harp George e lançou seu
primeiro álbum de blues, Chromaticism, em 2014, que inclusive foi nomeado ao
Blues Music Award de 2015. O ex-professor e agora bluesmen profissional, Big
Harp George acaba de lançar seu segundo trabalho de estúdio, chamado Wash My Horse
In Champagne, que prova assertiva acima. Com um senso de humor agudo, carregando mensagens críticas da sociedade contemporânea, e uma
banda muito boa, Harp George manda uma seleção toda de originais em que mostra
todo seu talento como gaitista e compositor. Bastante viajado e colecionador de experiências nos mais distantes cantos do planeta, já tendo passado tempo em Beirut, no Líbano, em Cairo, no Egito e nos territórios ocupados por Israel fora de Jerusalem. Com essa experiência, Bisharat propõe uma revolução no blues para adaptá-lo aos novos tempos e torná-lo relevante culturalmente de novo. Para ele, o blues não tem que ser necessariamente sobre bebida, ir atrás de mulher e jogatina. "É sobre ser uma boa e sólida pessoa", diz Bisharat numa entrevista ao jornal Mercury News. E é essa perspectiva sobre o blues que ele coloca em Wash My Horse In Champagne. Ele resume "blues é sobre o triunfo do espírito humano sobre circunstâncias adversas contra opressão, contra injustiça, contra a pobreza, e dureza de qualquer natureza".
O álbum inicia
no piano com “Home Stretch”, mas logo a gaita de Harp George toma conta da
condução. A letra fala da redenção de um esposo arrependido, para ser um “homem
melhor”, “dizer adeus à bebida e olá à minha esposa”, “parar de dirigir
loucamente por aí”, etc. Ou seja, alguém que trocou coquetéis e churrascos por
saladas e chá. “Road Kill” é bem divertida e com ritmo dançante, música pra
festejar e tomar umas cervejinhas. Tem algo bem anos cinquenta nela, os backing
vocals e os solos de guitarra, por exemplo. “Wash My Horse In Champagne”, a
faixa que dá título ao álbum, tem uma forte inspiração brasileira e latina, especialmente no
violão; na letra, a imagem de "lavar meu cavalo com champagne" é uma ótima referência coletada numa de suas viagens ao Brasil, ouvindo a história de Manaus, no início do século XX, que explodiu em riqueza com a busca incessante pela borracha para a crescente e nova indústria automobilística que surgia nos Estados Unidoos. Em Manaus, havia uma pessoa tão rica que foi vista lavando o seu cavalo em champagne, literalmente.
“Well I’m not rich now and I’m living in a world
of pain / Like a Manaus rubber baron gonna wash my horse in champagne / I’m
gonna wash my horse in champagne!”
Isso marcou Harp George e o inspirou para compor a música, que mostra a resistência e
persistência para conseguir vencer mesmo com todos os percalços, contando ainda
com uma referência brasileira: . “Cool Mistake”, para somar à gaita de Harp
George, conta com J. Hansen tocando o washboard;
“My Bright
Future” inicia a melhor fase do disco; um
slow blues emocionantemente desolador. “It’s all downhill from here brother / And it’s now so very clear to me
/ Much as I hate to admit it / My bright future is behind me”. Outro
ponto alto do disco sem dúvida é “I Ain’t The Judge Of You”, uma inesperada e
muito bem vinda letra pró-LGBT. “I
ain’t the judge of you / You ain’t hurting no one / I ain’t the judge of you / Go
on and have your fun”. Infelizmente, muitos ainda não pensam como o
velho Big Harp George; é o que provou ontem o atentado à boate gay em Orlando,
nos Estados Unidos, deixando 50 mortos. Uma mensagem muito atual e necessária
nesse nosso mundo de hoje. Com “I Wasn’t Ready” o nível continua elevado, um
belo blues lento sobre George tendo que lidar com perda da mãe: "No I / No I never saw it coming / Guess a grown
man / Can still be a fool / But I wasn’t ready to lose you”. De arrepiar.
O ritmo volta
a acelerar com “If Only”, com uma sessão de metais pra empolgar ainda mais. “Light
From Darkness” tem um ritmo mais de funk; “Mojo Waltz” é uma agradável faixa
instrumental em que Big Harp divide solos de gaita com uns de metais, provocando
um resultado bastante interessante. Em “What’s Big” Harp George afirma que a
grandeza está, na verdade, num “coração de ouro” e não “jogar cartas”, “levantar
a mão pra esposa”, “beber uísque até cair no chão”, muito menos “grandes armas
e explodir pessoas”. Politicamente correto no blues; estranho, mas não
desnecessário. Pra fechar, após a instrumental cheia de solos de gaita, “Size
Matters”, “Justice In My Time”, inspirada por sua experiência visitando a casa de sua avó perdida na guerra entre Palestina e Israel de 1948, na qual mais de 700 mil palestinos foram desabrigados e perderam suas casas. A letra mostra um belo dueto com apenas gaita e baixo, fechando
com chave de ouro. "Hey people / I’m looking for justice in my time / Some
folks seek freedom in the grave / But I want mine before I die”.
Em tempos
turbulentos, em que as pessoas reclamam que a vida perde a graça com o
politicamente correto, Big Harp George mostra que se pode se divertir
respeitando os outros e buscando sermos melhores pessoas sempre. Por isso, uma
grande relíquia para 2016. Como Harp George diz na faixa final:
“Freedom in the grave ain’t enough
I want mine before I die”. Por isso que temos que construir o mundo justo aqui e agora.
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