Esse ano foi um pouco atípico, pois tive que me dedicar a outros projetos e acabei deixando um pouco de lado a produção de resenhas sobre os discos. Todavia, não poderia deixar de compilar os melhores na já tradicional lista de Melhores Álbuns do Ano. O mundo, e sobretudo o Brasil, passa por um momento político conturbado. Por isso, o trabalho que resume melhor o ano é a obra-prima de Elza Soares, Planeta Fome.
1. Elza Soares - Planeta Fome
2. Mary Lane - Travelin' Woman
3. Chico César - O Amor é um Ato Revolucionário
4. Fruteland Jackson - Good as Your Last Dollar
5. Christone "Kingfish" Ingram - Kingfish
6. Bob Corritore & Friends - Do The Hip Shake Baby
7. The Cash Box Kings - Hail to the Kings!
8. Jimmy "Duck" Holmes - Cypress Grove
9. Walter Trout - Survivor Blues
10. Jontavious Willis - Spectacular Class
11. Willie Buck - Willie Buck Way
12. Tony Holiday - Porch Sessions
13. Gaye Adegbalola - The Griot
14. Piedmont Bluz - Ambassadors of Country Blues
15. John Clinfton - In The Middle of Nowhere
16. Watermelon Slim - Church of the Blues
17. Leo "Bud" Welch - The Angels In Heaven Done Signed My Name
18. Big Joe & The Dynaflows - Rockhouse Party
19. William Clarke - Heavy Hittin' West Coast Harp
20. Billy Branch & The Sons of Blues - Roots and Branches (}The Songs of Little Walter)
21. John Harp - How Can I Lose What I Never Had
22. Kenny "Beedy Eyes" Smith & The House Bumpers - Drop The Hammer
23. Nick Moss Band - Lucky Guy
24. John Primer - The Soul of a Bluesman
25. Rosie Flores - Simple Case of the Blues
26. Rockin' Johnny - Dos Hombres Wanted
27. Benny Turner - Going Back Home
28. Giles Robson - Don't Give up on the Blues
29. Big Creek Slim - First Born
30. John Dee Holeman - Last Pair of Shoes
31. Harpdog Brown - For Love & Money
32. Jazzmeia Horn - Love and Liberation
33. Mavis Staples - We Get By
34. North Mississippi Allstars - Up and Rolling
35. Little Joe McLerran - Month of Sundays
36. Annie & The Hedonists - Bring it on Home
37. John Mayall - Nobody Told Me
38. Vin Mott - Rogue Hunter
39. Bloodest Saxophone - Texas Queens 5
40. Leonardo Cohen - Thanks for the Dance
41. Li'l Chuck the One Man Skiffle Machine - Mono
42. Luther Dickinson - Solstice
43. Willie Farmer - The Man from the Hill
44. T. Guy - Tell Uncle John
45. Boo Boo Davis - Tree Man
46. Odair José - Hibernar na Casa das Moças
47. John Blues Boyd - Through My Eyes
48. Ronnie Earl - Beyond the Blue Door
49. Bobby Rush - Sitting on the top of the Blues
50. Al Lerman - Northern Bayou
51. Keb' Mo' - Oklahoma
52. Lia de Itamaracá - Ciranda Sem Fim
53. Alexis P. Suter Band - Be Love
54. Mark Joseph - The Musician and the Muse
55. Shady Frank - Home
56. Bad Temper Joe - The Maddest of Them All
sábado, 28 de dezembro de 2019
terça-feira, 17 de setembro de 2019
Resenha de Elza Soares - Planeta Fome
Elza Soares é um ícone da cultura
nacional, seja como símbolo feminino de resistência diante de uma vida cheia de
sofrimento e reveses, seja como uma das maiores intérpretes da música
brasileira. Desde cedo, Elza travou lutas típicas de uma mulher negra da
periferia, como a fome, violência doméstica e sexual, tendo sido mãe
precocemente, aos doze anos de idade, para logo em seguida padecer da maior dor
de todas: aos quinze anos, perdeu seu segundo filho que sucumbiu à fome.
Pois bem,
mesmo diante de todos os percalços, que fariam com que qualquer pessoa normal
pensasse duas vezes antes de continuar, Elza tentou a carreira musical,
inscrevendo-se no concurso de música do programa de Ary Barroso, na Rádio Tupi,
em 1953. O que se passou no programa tornou-se icônico para a biografia da
cantora. Maltrapilha e com jeito humilde de falar, Ary perguntou a ela: - “de
que planeta você veio?” Elza respondeu: - “Do mesmo planeta que o senhor, seu
Ary. Do Planeta Fome”.
Desde então,
muita coisa se passou. Elza Soares, a Mulher do Fim do Mundo, tornou-se um
ícone da nova geração, graças a parcerias exitosas que conectariam a
octogenária a um novo público. Essa nova guinada veio em 2015, com o aclamado A
Mulher do Fim do Mundo, primeiro álbum totalmente com músicas inéditas. O tom
altamente crítico, reflexivo e enérgico, teve continuidade com o trabalho Deus
é Mulher, de 2018. Agora, no topo de sua carreira, Elza Soares resgata o episódio
que se sucedeu 66 anos atrás no programa de Ary Barroso, lançando seu novo álbum,
Planeta Fome. Culminância dessa nova fase da carreira da cantora, Planeta Fome é
um trabalho ousado do início ao fim, que mostra uma Elza empoderada, destemida,
altiva diante de um tempo em que, como ela diz numa das letras, “lutar por seu
direito é um defeito que mata”. Aos 89 anos, ela dá uma tapa nos “revolucionários
Che Guevara de sofá” e é simplesmente uma – se não a maior – porta-voz da música
de protesto em relação à fase autoritária, fascista, racista, homofóbica, exclusiva
e assassina na qual o Brasil decidiu mergulhar de cabeça nos últimos anos. Ela
conseguiu absorver o zietgiest do Brasil contemporâneo, não somente num tom
pessimista, mas também dando impulso na continuidade da luta por um “Brasil do
Sonho”.
A posição de
Elza fica clara já pela capa do disco, assinada pela transexual e ativista LGBT
Laerte, traduzindo um pouco o tom caótico da nossa sociedade. A
diversidade de ritmos e sons também dá um aspecto fragmentado e caótico, que,
ainda assim, mantém a unidade conceitual que funciona perfeitamente do início
ao fim, ora mais intensa, ora mais calma.
A lapada
começa com “Libertação”, com participação de BayanaSystem e Virgínia Rodrigues.
Aqui Elza já dá seu recado: a Mulher do Fim do Mundo não vai sucumbir. “Menino”,
de composição da própria Elza, é um apelo empático aos jovens que passam
privação, mas que não se voltem contra o próximo para gerar mais violência. Só
assim para acabar com o ciclo que infelizmente muitos jovens estão inseridos e
que não conseguem se libertar.
A faixa
seguinte “Brasis” é uma das mais intensas. As referências nas letras são muitas
e parece que a cada vez que você ouve, percebe ainda algo novo. Fala sobretudo
do Brasil desigual, um que “é próspero” e do outro que “não muda”, um que “investe”
e outro que “suga”. Tem um Brasil que “soca” e outro que “apanha”. Ao mesmo tempo, esses diferentes Brasis pedem
a mesma coisa: no fim do ano estamos todos pedindo paz, saúde, trabalho e
dinheiro. O mais genial dessas letras críticas é que elas são verdadeiramente
nacionalistas e patrióticas. Exaltam o país, o seu povo, a sua diversidade, impulsiona
o Brasil pra frente, pra ficar de cabeça em pé, mas ele teima em ficar para
trás, cabisbaixo.
“Blá Blá Blá”
é uma das construções musicais mais interessantes e imprevisíveis, que, somada
a uma letra ácida, faz dela um dos pontos centrais do disco. É a história de
alguém que quer ficar, mas que só dão motivo para querer ir embora. Entre as
estrofes à machadadas, como diria Nietzsche, a vinheta de “Me Dê Motivo”, de
Tim Maia. É o Brasil à venda pelos patriotas, que vende, aluga e cede as terras
para a América do Norte – nomeadamente os Estados Unidos. É o Brasil que passa reformas que prejudicam os trabalhadores e os mais pobres, dizendo que se não o fizer o
país irá quebrar. É a ideologia no sentido marxista mais claro: as ideias da
classe dominante se impondo nas classes dominadas.
A força dessa
ideologia se torna ainda mais explícita na genial “Comportamento Geral”. Quando
vemos que esta é uma composição de Gonzaguinha, de 1973, percebemos a
intensidade dessa ideologia e que, na verdade, pouca coisa mudou. A letra fala
do cidadão comum, aquele que se sacrifica com um sorriso no rosto, o famoso
capitalista pobre, que “deve rezar pelo bem do patrão e esquecer que está
desempregado”. São cortes na educação, fim de direitos trabalhistas, fim da
aposentadoria, congelamento de salários, mas que “deve aprender a baixar a
cabeça e a dizer sempre muito obrigado”. Não é anacronismo. Essa era a
realidade do Brasil da década de setenta, em plena linha dura da ditadura. No
Brasil de 2019 seguimos a mesma linha, sendo que, pior, de forma mais
consentida. “Você merece”.
Mesmo quando
Elza deixa de lado claramente os temas políticos, as letras continuam a
traduzir a desordem, o caos e a contradição, como quando ela diz, na faixa “Tradição”,
para desconsiderar a razão, desobedecer o coração para descontinuar a tradição.
“E na bagunça dessa vida, se jogue em meio à confusão”. A acústica “Lírio Rosa”
parece perdia em meio a essa miscelânea, mas mostra o lado mais romântico de
Elza.
“Não tá mais
de graça” tem uma das letras mais impactantes, pois faz referência a uma outra
música de Elza Soares, “A Carne”, que diz que a carne negra é a mais barata do
mercado. Pois bem, agora mudou. Não, o negro geme ainda numa poça de sangue,
mas a diferença é que agora ela não está mais de graça, “o que não valia nada agora
vale uma tonelada, não tem bala perdida, tem seu nome, é bala autografada”.
Diante de um tempo em que políticos populistas de direita usam a violência
contra a população negra como forma de ganhar popularidade, agora a carne negra
vale uma tonelada. A polícia agora pode assinar a bala que mata, está autorizada.
Triste realidade. Como não cabe pessimismo em Elza, depois de citar Tupac,
Marielle Franco, Rosa Parks, para destravar a corrente e sair da foice, na
letra ela atesta: “Mas os pretos avançam, Wakanda forever yo!”
Ainda não nos recuperamos totalmente do golpe
e em seguida Elza nos manda outra música que representa o sonho daqueles que
querem um país melhor para todos. “País do Sonho” deveria se tornar um hino na
luta por esse novo país. Mais uma vez, o otimismo prevalece sobre a visão
sombria do momento atual do Brasil.
“Pequena
Memória Para um Tempo Sem Memória” é uma ode à resistência, principalmente àqueles “humilhados, ofendidos, explorados e oprimidos” que sucumbiram e que se
tornaram “sementes nesse chão”. É verdadeiramente uma “história a contrapelo”
no sentido de Walter Benjamin, a história dos vencidos. “E vamos à luta”
Em “Virei o
jogo” Elza Soares representa a filosofia nietzschiana na afirmação da vida,
mesmo diante da dor e da tragicidade da existência humana. “Se vem de não eu
vou de sim, afirmação até o fim” ou então “você é não sou um milhão de sins”. Nietzche
chegou a falar “o que não me mata me fortalece”. Já Elza Soares decretou: “Cara
feia pra mim me fortalece”. Para fechar, “Não Recomendado” trata do
obscurantismo, da censura provocada pelo fundamentalismo religioso, da
homofobia e transfobia.
Chega-se ao
fim de Planeta Fome meio que desnorteado, uma tontura, ainda tentando absorver
o impacto das pancadas. Infelizmente, numa época extrema de intolerância, na
qual as pessoas vivem confortavelmente nas suas bolhas das redes sociais, o
alcance da mensagem de Planeta Fome seja limitado, mas na verdade trata-se de
um clássico histórico, que ajudará aos brasileiros do futuro a entender nós,
brasileiros, podemos enveredar por caminhos perigosos e sombrios.
segunda-feira, 20 de maio de 2019
Resenha de Christone "Kingfish" Ingram - Kingfish
O
blues não costuma ser muito generoso com os mais jovens. É muito mais comum
vermos uma pessoa estreando a carreira com seus cinquenta, sessenta, setenta e até
oitenta anos do que alguém muito jovem. Parece que a própria essência do blues
exige essa maduridade da experiência, esse conhecimento da vida real, de saber
lidar com as dores da vida e tratar delas por meio da música. É aí que
Christone “Kingfish” Ingram, um jovem de 20 anos, surge para derrubar essa “teoria”.
Ele nasceu em Clarksdale, no Mississippi, o berço do blues, próximo da
plantação onde Muddy Waters passou a infância, bem como o cruzamento da highway
61 e 49, onde supostamente Robert Johnson bateu um papo e fez o pacto com o
diabo. Pois bem, diferente de um jovem comum de sua idade, Kingfish não mostrou
interesse pelo hip-hip ou rap. Ao contrário, desde cedo ele demonstrou grande
interesse e habilidade para o blues, fazendo com que há alguns anos já
carregasse o peso de ser o “futuro do blues”. A família dele cantava na Ingreja
e a mãe é prima de uma lenda country, Charley Pride. Com seis anos, Ingram
começou a tocar bateria e baixo. Aos 11 ele dominou rapidamente a guitarra e
estreou nos palcos. Dentre os artistas com quem já diviu o palco estão nomes como
Buddy Guy, Tedeschi Trucks Band, Robert Randolph, Guitar Shorty, Eric Gales e
outros.
É com essa
pressão que Christone “Kingfish” Ingram finalmente nos entrega seu tão aguardado
álbum de estreia: Kingfish, produzido por Tom Hambridge, duas vezes vencedor do
Grammy. Pode-se dizer que Kingfish lidou muito bem com a pressão e deu conta do
recado. Seu álbum de estreia parece feito por um veterano, tranquilo por
mostrar todas suas habilidades e passsar seu recado.
Observando
pela capa, podemos já perceber que Kingfish se apresenta como um guitarrista de
blues. No álbum, Kingfish não é apenas um ótimo guitarrista, mas também um
ótimo vocalista. O álbum decola com um poderoso blues-rock “Outside of This
Town”, sobre o momento de sair da sua cidade em direção a coisas maiores. Na
segunda faixa, “Fresh Out”, Kingfish é acompanhado na guitarra e no vocal por
um dos seus maiores padrinhos musicais, Buddy Guy. A alternância de solos é
dinâmica e muita rica. A maturidade e a tranquilidade da voz de Kingfish chega
a impressionar, já que divide os vocais à vontade com gigantes do gênero e
notáveis vocalistas, como o próprio Guy e Keb’ Mo’, como na faixa “Listen”.
O
álbum continua a todo vapor com mais um blues-rock, “It Ain’t Right” e, sem
dúvida, os solos são um show à parte. Mas os pontos altos do disco são quando
Kingfish dá um tom intimista e pessoal, aproveitando a curiosidade de ser um
jovem de 20 anos tocando um gênero considerado “música de velho”. Ele fala
dessa relação em em “Been Here Before”, só no violão e voz. Na letra, Kingfish dá
tons míticos à sua história e fala sobre a sua “alma velha” que já andou
peregrinando por aí. A avó, como a voz
da sabedoria, costumava dizer que ele já esteve ali antes. Em “If You Love Me”
aparece um item que estava fazendo falta: a gaita, tocada por Billy Branch. Com
a ajuda ainda de Keb’ Mo’ na guitarra, a música é um shuffle bem intenso.
Dentre
inúmeros destaques, “Love Ain’t My Favorite Word” com certeza se sobressai. Um
slow blues incrível, cheio de solos de guitarra e uma letra comovente sobre
como o amor é superestimado, com Kingfish já falando sobre suas desilusões
amorosas. A influência de Buddy Guy fica evidente em “Before I’m Old” e “Believe
These Blues”, onde inclusive Kingfish solta umas críticas sociais sobre
enquanto a pobreza e a fome durar o blues nunca vai acabar. “Trouble” tem um
ritmo bem interessante e diferente, entrecortado por solos de guitarra. Outra
acústica “Hard Times”, com Keb’ Mo’ mais uma vez no violão, é outro grande
momento. É curioso um jovem de 20 anos falando de “tempos ruins”, mas quando a gente
pensa que vivemos em termos turbulentos e preocupantes, sabemos do que ele está
falando. Ainda dá tempo para um solo de slide bem interessante. O álbum termina
com “That’s Fine By Me”.
Christone
“Kingfish” Ingram certamente deixou de ser apenas uma promessa para ser uma
realidade. O fato dele ser o futuro do blues só o tempo irá dizer. Ele tem todas
as condições para isso. O perigo é ele ficar seduzido pelo mainstream e partir
para mistura com outros estilos, não sendo nem uma coisa, nem outra. Uma grande
promessa que foi para esse caminho foi Gary Clark Jr. Tomara que esse não seja
o caso de Kingfish.
terça-feira, 2 de abril de 2019
Resenha de Mary Lane - Travelin' Woman
Só
o blues tem história como essa: artistas que começam sua carreira fonográfica
com a idade já bem avançada, mas que permaneceram anônimos por décadas, vivendo
uma vida comum, trabalhando de morrer durante o dia, passando por dificuldades,
sofrendo os baques da vida, levantando-se para tentar dar a volta por cima, até
cair de novo, e se levantar mais uma vez, enquanto isso busca se divertir para escapar da dureza da vida seja
apresentando sua música no bar – e ganhando um extra – ou se fortalecendo com
músicas na Igreja no domingo. Foi o caso
de Leo “Bud” Welch, octogenário, que surgiu em 2014 com álbuns que
mesclavam perfeitamente o blues e o
gospel, coisa que ele havia feito praticamente a vida toda no anonimato.
Infelizmente, casos assim, até pela própria brevidade da vida longeva, tem um
prazo de validade curto, e “Bud” Welch acabou partindo no final de 2017, mas,
felizmente, sentindo o gostoso sabor do reconhecimento e do sucesso, ainda que
tardio.
Agora
surge mais um desses achados tardios e preciosos. Atende pelo nome de Mary
Lane, uma veterana de 83 anos, que por mais de cinqüenta anos peregrina pela
cena em West Side, de Chicago, e lança agora um disco depois de 20 anos de sua
estréia, Travelin’ Woman, pela nova gravadora Woman of The Blues. Acompanhando
o disco, um documentário que conta a vida de Mary Lane, chamado I Can Only Be
Mary Lane, também será lançado. Ela é uma das últimas representantes do blues
original, aquele que saiu do sul segregado, fez a Grande Migração, foi para
Chicago, e lá dividiu o palco com outras lendas, como Elmore James, Magic Sam,
Junior Wells e ninguém menos do que Howlin’ Wolf. Lane nasceu em Clarendon, Arkansas, e cantou
por moedas nas esquinas de ruas, antes de iniciar sua carreira acompanhando
Robert Nighthawk.
Como para a
grande maioria das pessoas, a vida para Mary Lane foi dura. Nada foi fácil e
para conseguir qualquer coisa ela teve que dar o máximo de si. Persistiu, como estamos
sempre tentamos. Foi resiliente, pois foi obrigada a sê-lo. Continuou tentando,
mesmo quando muitos no seu caminho não acreditaram nela. Hoje, aos 83 anos, ela
lança um disco que já está cotado nos melhores discos de blues do ano. Segundo uma
entrevista para o site Chicago Blues Guide, ao ser perguntada o que esperava
alcançar com o disco, Lane foi direta e disse que esperava pelo menos conseguir
algum dinheiro. O entrevistado continua e pergunta o que ela acha de algumas
pessoas dizendo que ela pode ganhar um Grammy com esse disco. Mary Lane
simplesmente fala: “Eu não sei disso. Não ligo se ganhar um Grammy. Enquanto
estiver por aí e as pessoas estiverem comprando e colocado um dolar no meu
bolso, eu gosto disso”. Isso é o blues.
O disco é
incrível, assim como Mary Lane, que se a idade dela não tivesse sido revelada,
poderia passar por alguma vigorosa cantora de uns trinta e poucos anos. A banda
que a acompanha também está em ótima forma e faz um som bastante enérgico, com
solos de gaita e de guitarra para todos os lados. Em “Travelin’ Woman”, que dá o título ao
álbum, ela conta um pouco de sua história, carregada por ótimos solos de
guitarra. Logo em seguida, “Ain’t Gonna Cry No More”, um típico Chicago blues,
é entrecortada pelo piano de Chris “Hambone” Cameron e a gaita de Eddie Shaw. “Leave
That Wine Alone”, que conta os problemas da bebida na vida familiar, é bastante
animada e com um ritmo constante que dá pra passar a música inteira estalando
os dedos. Blues direto na veia segue com “Some People Say I’m Crazy”. Em “Raining
In My Heart” a voz de Lane fica mais suave e parece uma doce garoa caindo num
sábado à noite. Logo depois, o clima fica leve e relaxado na belíssima balada “Let
Me Into Your Heart”. Quem diria que a senhora que está cantando tem 83 anos?
Ninguém. Os destaques do disco continuam com “Ain’t Nobody Else”, com Billy
Branch na gaita e “Blues Give Me a Feeling”, também cheia de acompanhamentos de
gaita. Segundo Mary Lane, “if
you don’t dig the blues you have a hole in your soul”, é verdade. Em “Bad
Luck and Trouble” Lane fala sobre o tema clássico do blues. Por fim, Lane vira
acústica em “Make Up Your Mind”, arrasando do mesmo jeito.
É uma pena esse
talento ter ficado escondido por tanto tempo. De qualquer forma, Travelin’
Blues é um disco que não apenas coloca Mary Lane no mapa do blues mundial, mas
sim a coloca como uma gigante do blues. Exatamente o que ela merece.
terça-feira, 12 de março de 2019
Resenha de Leo "Bud" Welch - The Angels In Heaven Done Signed My Name
Quando Leo “Bud” Welch surgiu na cena do blues em 2014 com seu disco de estreia, Sabougla Voices, aos 82 anos, causou uma surpresa enorme, tanto pela sua vitalidade quanto pela de estranhesa de ter um disco de estreia com uma idade tão avançada. O fato é que Welch esteve ligado ao blues e ao gospel durante toda sua vida, tocando em igrejas e bares por horas seguidas. Na década de 50, chegou a abrir shows para figuras como B.B. King, Howlin’ Wolf, Elmore James, John Lee Hooker, só para citar alguns. Convidado por B.B. King para uma seção de gravação, Welch não pode comparecer por não ter dinheiro para pagar um quarto de hotel. Infelizmente, B.B. King também não pagou e perdemos o que poderia ter sido o início de uma promissora e bem-sucedida carreira no blues.
O fato é que
a carreira de estúdio de “Bud” Welch deslanchou com Sabougla Voices, focando
nas canções de gospel que ele tocou por tantos anos, numa roupagem crua de
blues tradicional. Em 2015, o sacro virou profano com I Don’t Prefer No Blues. O
impacto dos dois álbuns fez o bluesman octogenário que nunca havia deixado o
Mississippi percorrer o país em turnês, viajando de avião pela primeira vez e
tocando em renomados festivais de blues.
Pouco antes de falecer, em 19 de
dezembro de 2017, Leo “Bud” Welch fez uma última sessão de gravação, em
Nashville, com Dan Auerbach. The Angels In Heaven Done Signed My Name é
resultado dessa última gravação, depois de dar uns retoques finais às faixas
gravadas com Welch. São dez faixas que capturam o espírito de um grande
bluesman. O tema da morte, sempre visto pelo viés de um homem religioso e que
vê a passagem como um encontro com Deus, é recorrente. Os destaques
dentre elas são “I Know I’ve Been Changed”, “Don’t Let the Devil Ride”, claro, “I
Wanna Die Easy”, “Let it Shine” e “Walk With Me Lord”.
Enfim, The Angels In Heaven Done
Signed My Name vem para engrandecer ainda mais o talento desse grande mestre na
arte do blues, que, infelizmente, tivemos tão pouco tempo para desfrutar, mas que
sua passagem está marcada por cada nota tocada e por cada verso cantado com
energia e emoção autêntica no final de sua vida.
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