sábado, 12 de março de 2016

Resenha de Mavis Staples: Livin' On A High Note


                No ano passado, a histórica sambista brasileira Elza Soares recebeu uma série de composições inéditas feitas especialmente para serem cantadas por ela; o resultado dessa parceria foi o incrível álbum A Mulher do Fim do Mundo, aclamado pela crítica. O mesmo aconteceu com Mavis Staples, que recebeu de vários compositores as músicas do seu novo álbum, Livin’ On A High Note, lançado em 19 de fevereiro. Assim como Elza Soares no Brasil, Mavis Staples é uma cantora histórica, com mais de sessenta anos de carreira, contando com os anos que era a líder da banda da sua família, Staple Singer. Os últimos anos tem sido especiais para Mavis, que ressurgiu com uma sequência de ótimos álbuns, tendo vencido inclusive um Grammy com You Are Not Alone, de 2010, seguido por One True Vine, de 2013, ambos produzidos pelo líder da banda indie Wilco, Jeff Tweedy. Embora a parceria tenha funcionado muito bem, Mavis Staples optou por mudar de produtor para Livin’ On A High Note, escolhendo M. Ward, incorporando mais o blues, soul e folk. Ward ficou incumbido  de coletar músicas de diferentes compositores feitas exclusivamente para serem cantadas por Mavis. Dentre os que entraram na brincadeira estão nomes como Nick Cave, Ben Harper, Justin Vernon (Bon Iver), Neko Case, M. Ward, Tune-Yards e Son Little. O resultado ficou esplêndido. Além da potente voz da cantora de 76 anos, as temáticas das letras são outro ponto forte de Livin’ On A High Note; são problemáticas atuais, baseadas no que está acontecendo no mundo hoje, que a música, se não pode curá-las, pode transmitir energias e mensagens que podem ajudar as pessoas a lidar com as situações. Na maioria das vezes, o disco também é bastante positivo, esperançoso, acreditando num futuro melhor para todos nós se formos fortes, solidários e determinados o suficiente para agirmos de acordo com nossas possibilidades.

                A primeira música é “Take Us Back”, composta por Benjamin Booker, uma música para espantar o desânimo de qualquer um. Com ritmo acelerado e funky, Mavis agradece o apoio e o amor das pessoas, amigos e familiares, que ajudam na vida, sobretudo nos momentos de preocupação e dúvida, e nos mantém com vontade de seguir. “I've got friends and I've got, I've got Family I've got help from all the people who love me”, canta Mavis no refrão. A faixa seguinte, escrita por Ben Harper, “Love And Trust”, as duas coisas que todos buscam incessantemente, seja o juiz ou o criminoso, o pecador ou o padre. “Haven't we suffered, suffered enough Now we're out here tryin' to find some love and trust”.

                Uma das mais belas músicas do álbum é “If It’s A Light”, quase como uma prece, uma mantra para que a ínfima luz que surge não se apague. Temas políticos também ocorrem em Livin’ On A High Note, como é o caso de “Action”, composição de Merrill Garbus, na qual Mavis conclama a todos que estão cansados de ficarem cansados, todos os que estão com medo para a ação política de fato. Foi inspirada pelos recentes episódios de violência policial contra a população negra dos Estados Unidos e pelo movimento ativista Black Lives Matter. “Consider this a sign of an emergency who's gonna do it if I don't do it?”. A voz pertence somente a uma das pessoas que estavam com Martin Luther King no movimento pelos direitos civis na década de 60. Ela sabe do que fala. “Don’t Cry” começa como um gospel acústico, mas depois acelera o ritmo numa conjunção de sons. É uma música de resistência contra todos que lhe querem fazer mal, que querem lhe usar, afinal, “It's your innocent blood they want, it's your innocent mind”.





                “Tomorrow” é mais uma música com mensagem positiva, otimista, de esperança. “Dedicated”, composta por Justin Vernon e M. Ward, também trata de superação, mas desta vez no âmbito dos relacionamentos. Aí finalmente chega na melhor música do álbum, em relação a letra, à música, tudo: “History, Now”, escrita por Neko Case, Laura Veirs e Donny Gerrard; a letra é uma aula de noção da história, quais as lições tiramos dela e como iremos pautar nossas atitudes no presente. Infelizmente é a mais curta música do álbum, passando pouco dos dois minutos. A letra é toda incrível, daqueles que apenas fechamos os olhos e sentimos o impacto de cada verso:

“Born into a fight
An inherited war
Born to children left over from wars before wars and the wars before

You do see a pattern right
Yet somehow our love doesn't die
What do we do
With this history now
Do we go in like a surgeon
Do we go in like a bomb
How do we dismantle the sorrow and rage
And pick up our scars off the ground
Those girls and boys who died and lived for us
So we could speak and love and be with you now”




As duas últimas músicas também são de tirar o fôlego. Em “Jesus Lay Down Beside Me” a imagem é surpreendente: o desespero é tão grande que ela está suplicando a Jesus para que se deite junto com ela para descansar diante de tanta preocupação e tristeza, já que a Sua verdade não foi ouvida e agora estamos num mar de ganância e desamor.  Aqui Jesus é quem está desolado e necessitando de ajuda, de um refúgio. Lindo e triste. Para fechar o álbum, a acústica “MLK Song” (as iniciais de Martin Luther King) é formada por palavras tiradas de um discurso de Dr. King, chamado “The Drum Major Instinct”, proferido em 1968, que conclama todos para os sentimentos de solidariedade, de cristianismo, de justiça, cada um fazendo sua parte na construção de um mundo melhor, na marcha pela paz, já que, como Mavis diz: “And in the march for peace tell them I played the drum”.

Livin’ On a High Note está enquadrado no contexto de reação dos representantes da comunidade negra dos Estados Unidos de se levantar e denunciar a ultrajante violência sofrida pelos seus jovens. O fato de vir de uma remanescente dos movimentos de luta pelos direitos civis da década de 60 torna a mensagem ainda mais marcante para os mais novos. A julgar por Livin’ On A High Note, Mavis Staples ainda tem muito que dizer. Voltando ao paralelo com Elza Soares, se em 2015 Elza Soares foi a Mulher do Fim do Mundo, na esfera profana, então Mavis Staples é a Mulher do Fim do Mundo na esfera do sagrado. Mavis Staples oferece pouco de paz e esperança em meio ao turbilhão. 



                

quinta-feira, 3 de março de 2016

Resenha: Dion - New York Is My Home




                O guitarrista Dion está na ativa há quase tanto tempo quanto o Rock n’ Roll. Iniciando a carreira no final dos anos 50, Dion foi um dos maiores representantes do chamado doo wop de Nova York. Desde então, o guitarrista, natural do Bronx, flertou com o pop, o blues e o R&B, numa carreira de mais de cinquenta anos, naturalmente cheia de altos e baixos. Atualmente, no entanto, Dion está nas alturas, embalado por uma sequência de mais de dez anos de ótimos lançamentos, todos eles com um elemento em comum: o blues e o folk-rock. Desde de Bronx in Blue, de 2005, Dion já brilhou novamente com Son of Skip James, de 2007, Tank Full Of Blues, de 2012 e agora, aos 76 anos, presta uma singela homenagem à sua cidade natal com o disco New York Is My Home.

                O disco começa com o rock da divertida “Aces Up Your Sleeves”, que já mostra que Dion está com a voz melódica e firme e os solos de guitarra em ótima forma. Já com “Can’t Go Back To Memphis”, um blues clássico sulista, Dion encarna um personagem endiabrado que não pode voltar para sua cidade porque todos os policiais e padres sabem o seu nome e por isso ele tem que ficar por aí rodando. Blues puro. A faixa que dá título ao álbum, a folk “New York Is My Home”, a mais calma do disco, é um belo dueto com outro cantor bastante ligado à “cidade que nunca dorme”, Paul Simon. Uma bela homenagem à frenética cidade. Em “The Apollo King” a festa volta com tudo, lembrando o rock dos anos 50 de Chuck Berry; a letra celebra a vida do saxofonista de R&B, Big Al Sears, membro da banda da lenda Duke Ellington.




                “Katie Mae”, uma das duas covers do álbum, e também uma das melhores faixas do álbum, Dion revisita o clássico de Lightnin’ Hopkins, criando uma versão que sem dúvida possui vida própria. Depois de “I’m Your Gangster Of Love”, vem mais uma original de Dion que é puro blues. “Ride With Me” é uma das mais intensas do álbum, como já sugere os primeiros segundos da música, o motor de uma moto sendo ligado e dando partida. Durante todo o tempo a música é só movimento, ação, força, ou seja, toda a jovialidade do velhinho de 76 anos. A vitalidade continua presente na faixa seguinte, “I’m All Rocked Up”. O disco caminha para o final com mais uma homenagem; em “Visionary Heart”, que lembra um pouco algumas baladas de Bruce Springsteen, Dion imagina uma carta para Buddy Holly (eles estavam juntos em turnê quando Buddy Holly, The Big Bopper e Ritchie Valens morreram no acidente de avião em 1959). Dion se refere a esse triste episódio na letra, “the day the music died”. Para finalizar, uma versão de “I Ain’t For It”, originalmente por Tampa Red.

                New York IsMy Home é um tipo de consagração para Dion, que ultimamente tem se dedicado a fazer um blues “made in Bronx”. Além disso, é um lembrete de alguém cuja presença nem sempre foi tão marcante como deveria, mas que nunca se retirou de cena em mais de cinquenta anos de carreira. Dion está na ativa, felizes aqueles que se dão conta de sua presença e se dispõem a ouvi-lo.