quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Resenha de Walter Trout - Battle Scars



Quando a tragédia se abate sobre a nossa vida, é natural cada um reagir de forma diferente; e a música, sendo uma das grandes manifestações artísticas do ser humano, muitas vezes é uma força catalizadora para lidar com esses momentos de extrema tensão, dúvida, medo, ansiedade, e assim por diante. Há incontáveis discos inteiros dedicados a alguma forma de tragédia, seja a de um fim de relacionamento, tragédias humanitárias e, naturalmente, discos que tratam sobre a batalha mais definitiva de todas: a batalha pela vida. Normalmente, quando um artista sobrevive a uma experiência de vida ou morte, seja acidente ou doença, ele utiliza sua arte para canalizar suas percepções sobre essa fase difícil, essa batalha da qual ele, aparentemente, sagrou-se o vencedor. Essas impressões dependem muito de cada um, do que experimentou, de como se sentiu; mais comumente elas soam depressivas, mórbidas, com o pensamento da morte sempre presente e representado por um som mais tenso e sombrio. É o caso, por exemplo, da banda indie Spiritualized, cujo líder Jason Pierce lidou com experiências desse tipo – dupla pneumonia – no álbum Songs In A&E, de 2008, um som melancólico e que faz o ouvir aproximar-se ao máximo da tensão e da dor sentida por Pierce. Há outras formas, no entanto, de lidar com essas sensações. E é exatamente isso o que faz o guitarrista Walter Trout com seu novo álbum, chamado BattleScars, cujo nome já sugere que serão tratadas as cicatrizes deixadas após a batalha pela vida.

                No início de 2014, Trout encontrava-se entre a vida e a morte, deitado numa cama de hospital sem poder mover-se, falar, nem mesmo reconhecer seus próprios filhos. Ficou em coma por três dias por falência hepática; em 26 de maio de 2014, Trout foi submetido a um transplante de fígado e começou a recuperar-se, a voltar a viver novamente em um lento processo de recuperação. Durante esse período, ele ainda conseguiu lançar um álbum, The Blues Came Callin’, sem saber se sairia vivo do processo. Pois bem, Trout venceu esta batalha e ressurge vigorosamente com seu novo trabalho, um álbum de blues incrível, que transcende inclusive os limites do próprio blues. Como está estampado na própria capa do disco: “Last year has been one where the blues truly came calling, and I came face to face with death more than once”. Então Battle Scars representa um paradoxo dentro do blues: embora seja um gênero originário de um ambiente social extremamente injusto, exploratório, e segregado racialmente, as letras do blues utilizam mais a ironia e o humor como forma de confrontar e resistir a esse ambiente. São, portanto, e de certa forma, letras mais leves e indiretas, cheias de duplo sentido e saídas inusitadas, que se unem a um som vivo e dançante que parece celebrar o milagre da vida. Walter Trout utiliza-se desse estilo musical e acrescenta ao som vivo e intenso, através de letras pesadas e densas, temáticas relativamente novas ao mundo do blues, como a morte, por exemplo. O blues, como um natural gênero de sobrevivência, que canta e celebra a existência, apesar de tudo, é a forma perfeita de Walter Trout ressurgir como um jovem de 17 anos, como ele próprio diz: “At first I wasn’t strong enough to play a single note on the guitar, but as I regained my strength, the music came back to me. Now when I pick up the guitar, it is liberating, joyful, and limitless. I feel like I’m 17 again.” Mas foi um longo e duro caminho até lá. E é isso que ele mostra em Battle Scars: a jornada pela vida da primeira música à última, em todas suas nuances e reviravoltas, em momentos de desespero e esperança, de perda da fé e da fé renovada, em achar que é o último dia vivo, em desejar desesperadamente que viva, ao menos, até o dia seguinte. 

                O álbum inicia com a faixa “Almost Gone”, que, como o título sugere, é um relato de um sobrevivente. Na alternância de intensos solos de guitarras e gaitas, Trout começa a falar de suas impressões e sobre as pessoas que o fizeram manter a fé, a continuar lutando: “Now I get the feeling/Something’s going wrong/Can’t help but  feelin’/I won’t last too long”. A letra mostra a luta entre pessimismo e otimismo, mesmo sendo impelido a lutar, Trout diz na letra: “we both know i’m almost gone”. Logo em seguida sirenes começam a disparar, dando uma noção exata do local onde estamos e o motivo pelo qual estamos ali. “Omaha” é uma das mais intensas. Ela se refere ao tempo em que Trout ficou no centro médico em Nebraska e tudo o que acontece no cotidiano de um hospital: a dor (própria e alheia), transplante de sangue, pessoas morrendo ao redor, as famílias chorando, etc. Em “Tomorrow Seems So Far Away”, numa música intensa e mais uma vez cheia de solos sensacionais na guitarra, Trout lida exatamente com essa expectativa e deixa claro: a luta é mais do que dia a dia, é hora a hora, minuto por minuto, já que “just hangin’ on, gimme one more day; but tomorrow seems so far away”.

                Chega a etapa do disco cheia de contrastes. O tom musical muda drasticamente na delicada, mas dolorosa, “Please Take Me Home”, na qual Walter Trout se aproxima bastante de algumas baladas de Bruce Springsteen, inclusive na voz. A letra é quase uma súplica de Trout para ser levado para casa. “Playin’ Hideaway” é bem enérgica, com vozes em coro no refrão, cantando quase jubilosamente. É o contraste de “Haunted By The Night”, canção mais sombria do disco, na qual mostra um Trout sem fé, cansado de lutar, preso numa cama de hospital sem poder andar e achando que o diabo está rindo na sua cara, enquanto é perseguido pela noite. “I’m looking in Hell, but i can’t stand the sight, I’m trembling in the darkness, cause I’m haunted by the night”.  Sem dúvida ela captura Walter Trout no seu fundo do poço, do qual ele tenta desesperadamente sair já na faixa seguinte, “Fly Away”, um rock direto, vivo e livre, que representa uma tentativa, ou fantasia, de libertação, qualquer que seja, a morte ou a recuperação. A fé aparece renovada aqui “can you hear me when I pray? we’re gonna fly, we’re gonna fly away”. 

                Após a fase dos contrastes, a esperançosa “Move On”, a guitarra continua a delinear o caminho, mas parece que foi feita na fase de recuperação, pois agora Trout parece olhar mais para frente, já tentando vislumbrar como a sua experiência mudou sua visão de mundo. Em “My Ship Came In” tem a volta da gaita já na introdução. Terminada a parte brilhante e positiva do álbum, os reflexos sobre a morte parecem ter voltado na música mais diretamente blues do álbum, e, portanto, uma das melhores, “Cold, Cold Ground”, ou seja, a batalha pela vida continuava. I could hear the angels calling, lord I just can’t stand the sound, I need to believe I ain’t ready for the cold, cold ground”. Então a música continua com uma sensação onírica de algum sonho ou alucinação proveniente do coma, mas sempre com a certeza de que o seu tempo não havia acabado. Ainda por cima, a música apresenta um dos mais belos solos de guitarra do álbum. “Gonna Live Again”, tocada no violão, é quando finalmente ele percebe que irá viver e sairá vencedor dessa batalha e não importa o que o fez passar por isso, ele apenas deve deixar esse momento para trás, já que agora está vivendo novamente e está com a chance de ser um homem melhor. A Deluxe Edition ainda tem duas músicas bônus, “Things Ain’t What They Used To Be”, só Trout com o violão e gaita, e finaliza com “Hell To Pay”, também um blues acústico de primeiríssima qualidade.

                Depois do drama vivido, Walter Trout acaba por nos entregar o melhor álbum de sua carreira. Claro que a carga emocional tem um impacto profundo nas músicas e as fazem ter uma conotação ainda mais forte. Mas é a honestidade que faz com que Trout consiga nos transportar um pouco que seja para sua vida. As cicatrizes da batalha são as lições que ele aprendeu em sua jornada, as quais ele consegue repassar um pouco delas para nós, ainda que não passemos pelo drama que ele passou. Um drama pessoal não é o suficiente para um bom álbum. Pode ser mais tentador do que parece tentar esconder profundas experiências pessoais e espirituais por trás de clichês. E definitivamente não é isto que Walter Trout faz em BattleScars. Você pode ouvir o álbum completo pelo youtube neste link
               

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