quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Abença Pai: Resenha de Miles Davis - Birth of The Cool




Miles Davis
The Birth of the Cool
(Capitol – imp.)

E absolutamente impossível saber o que seria do jazz se Miles Davis não tivesse se dignado a elaborar esse disco.

Olhar para a carreira de Miles Davis e visualizar a própria historia do jazz. Ele esteve por trás de cada inovação estilística e musical, e sua capacidade de arregimentar músicos notáveis para seus grupos tornou-se lendária. Todos que tocaram com Miles foram profundamente afetados por tal experiência. Ele tocava seu instrumento com um lirismo e uma introspecção que transformava radicalmente qualquer composição, tomando seu tom absurdamente inigualável.

Mas se a maneira como abordava seu instrumento não sofreu modificações, o modo como via e ouvia jazz não tem parâmetros na historia do estilo. Miles constantemente chutava a bunda do jazz para que este se desenvolvesse como linguagem musical.

Um projeto evidente – começou a excursionar com bandas logo aos 16 anos; aos 18, já fazia parte do grupo de Billy Eckstine, ao lado de Dizzy Gillespie e Charlie Parker, ambos considerados como os arquitetos do bebop -, Miles cedo percebeu que a rapidez do bebop não servia para seu estilo, mais lento. Em 1948, ele organizou um estranho – para a época – noneto, com a presença, alem de seu trompete, de sax-alto (Lee Konitz), sax-barítono (Gerry Mulligan), trombone (Kai Winding), french horn e tuba. Um contrato com a Capitol Records levou as gravações daquilo que seria mais tarde como The Birth of the Cool.

A banda entrou em estúdio em janeiro de 49 e, em três sessões (duas naquele mesmo ano, e a terceira em março do ano seguinte), gravou 12 faixas, com arranjos de Gil Evans. Na época, elas não chamaram a atenção, mas o som relaxado afetou a todos que participaram daquelas gravações e foi catalisador daquilo que se tornou mais tarde o jazz West Coast.




A elasticidade do bebop se harmonizava com a sonoridade típica de uma big band, só que com uma atmosfera muito mais relaxante, algo impensável para a época. Os temas jamais descambavam para o histrionismo, mesmo em termos rítmicos. A concisão dos arranjos de Evans levava o grupo a soar como se estivesse um número menor de integrantes.

O resultado foi mágico. A química musical exibida logo na abertura com “Move” já fornecia pistas do que viria a seguir, pois o tema – originalmente composto como um bebop – recebeu o tratamento mais suingado (ou, se preferir, cool). O mesmo acontecia em “Jeru”, composta por Mulligan, com um brilhante solo de Miles.

Mas foi na belíssima e plácida “Moon Dreams” que a coisa começou a se definir. Esta balada foi tocada em um andamento arrastado para a época, alem da seriedade quase erudita com que o grupo a executou. Outra composição de Mulligan, “Venus De Milo”, fez o grupo voltar a suingar compassadamente. Fornecendo um belo encadeamento com a faixa seguinte, “Budo”, um clássico tema do pianista Bud Powell reduzido a pouco mais de dois minutos de energia pura.





“Deception” e “Godchild” apresentavam uma tensão pouco frenética, antecipando a cadencia sutil – e elaborada ao mesmo tempo – de “Boplicity”, estranhamente creditada à mãe do próprio Miles. O espaçamento melódico de “Rocker” e “Israel” acabaram por influenciar toda a estrutura jazzística posterior, ao passo que a divertida “Rouge” e a romântica “Darn That Dream”, a única faixa com vocais – a cargo de Kenny Hagood – encerravam a pioneira experiência com chave de ouro. A coisa era tão inofensiva que todas as gerações de jazzistas subseqüentes acabaram influenciadas de modo irrefutável.

No final de sua vida, Miles acabou caindo em contradição ao embarcar em uma trip egocêntrica, em que roupas acetinadas eram parceiras de uma postura estranha para os fãs, já que Miles passou a tocar com um pé em pedais wah-wah e as mãos em teclados. Mas foi esse mesmo cara que ampliou as fronteiras do jazz sem perder a qualidade. O cool jazz de Miles foi o momento definitivo de uma gigantesca transformação.

A importância histórica de The Birth of the Cool adquire uma relevância ainda maior por ser um daqueles discos que, se bem entendidos, são capazes de abrir a cabeça – e a mente – de qualquer pessoa.

(Daniel Rodrigue)*

*Estudante de Historia da UEPB, apaixonado por música e quadrinhos (como Robert Crumb) que desde os 15 anos ouve e lê compulsoriamente tudo a respeito.


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