sábado, 27 de fevereiro de 2016

Resenha: God Don't Never Change: The Songs of Blind Willie Johnson




                O guitarrista e cantor de gospel, Blind Willie Johnson, pertence à primeira geração do blues, chamado de “Prewar Era”, ou seja, anterior à Segunda Guerra Mundial, e também sendo conhecido como “Classic Years”, que compreende o período de 1920 até 1932. Muitos tiveram o primeiro contato com a obra de Blind Willie Johnson apenas a partir do documentário de 2003, The Soul Of A Man, dirigido por Wim Wenders, da série The Blues, produzida por Martin Scorsese. Willie Johnson, nascido no Texas, em 1897 e do qual pouco se sabe sobre a sua pessoal além de depoimentos pessoais muitas vezes contraditórios – de amigos e conhecidos, sua curta obra e seu obituário, este cego cantor de rua foi um dos principais expoentes desse período que delineou bases essenciais para a evolução do estilo blues para os anos seguintes. Sua carreira musical, em termos de gravação, foi curta e meteórica, produzindo, no entanto, alguns dos maiores clássicos de dois gêneros musicais, o blues e o gospel (ele é considerado mais como gospel, apesar de ter tido uma profunda influência no blues). Willie Johnson, inclusive, foi quem melhor uniu esses irmãos briguentos, mas que não conseguem viver muito separado um do outro. Entre 1927 e 1930, Blind Willie Johnson gravou 30 músicas pela Columbia Records. E é isso, fim da história. Bem, possivelmente esse seria realmente o fim da história se dentre aquelas trinta canções não estivessem, por exemplo, “Motherless Children Have a Hard Time”, “Dark Was The Night-Cold Was The Ground”, “Soul Of A Man”, “Nobody’s Fault But Mine”, “Jesus Is Coming Soon”, dentre várias outras que se transformaram em grandes clássicos, tanto para a música gospel quanto para o blues. Depois da piora da Grande Depressão, em 1930, Willie Johnson abandonou a carreira musical e provavelmente se tornou um pastor, em Beaumont, Texas. Após um incêndio em sua casa e sem ter para onde ir, Willie Johnson e sua esposa tiveram que dormir sob as cinzas, onde acabou morrendo em 1945 de pneumonia, após sua entrada no Hospital ter sido recusada por ser cego.



É exatamente a vida e a obra desse cantor de rua cego que é celebrada na coletânea God Don’t Never Change: The Songs of Blind Willie Johnson, projeto dirigido por Jefferey Gaskill no decorrer de mais de uma década, que conta com a participação de grandes nomes da música atual, como Tom Waits, Lucinda Williams, Derek e Susan Tedeschi, The Blind Boys of Alabama, dentre outros. Blind Willie Johnson foi, por definição, um porta-voz do divino, do eterno, do espiritual. E esse grupo de artistas selecionados para o projeto entendeu isso talvez melhor do que o próprio Johnson, resultando, sem dúvida, em uma obra-prima desse gênero de coletânea. Na maioria das vezes, um projeto que usa muitos artistas diferentes para regravar uma obra específica fragmenta-se em pedaços de gravações isoladas umas das outras. Não há unidade. É como um seminário na Universidade em que um grupo divide um capítulo para cada pessoa, cada um estuda só o seu, apresenta sua parte e pronto. God Don’t Never Change foi um projeto no qual cada um dos indivíduos envolvidos sabia exatamente a dimensão, o significado histórico e emocional da obra em questão. A essência da obra de Willie Johnson está sempre presente, ou seja, Deus, o divino, não importa quem esteja empunhando os instrumentos e cantando ao microfone; a áurea divina, congregacionista, sem mencionar a qualidade técnica, permeia toda a obra. A grande variedade de artistas e, por conseguinte, de releituras, acabou sendo um elemento enriquecedor ao invés de causar uma fragmentação da obra. Outro fator digno de nota é a ampla participação feminina no álbum: das 11 faixas, 4 são lideradas por homens (Tom Waits fica a cargo de duas; The Blind Boys of Alabama com um e Luther Dickinson com a outra) e as 7 restantes são lideradas por mulheres (Lucinda Williams fica com duas, Susan Tedeschi recebe o acompanhamento de seu esposo, Derek Trucks, Cowboy Junkies, Sinéad O’Connor, Maria McKee e Rickie Lee Jones ficam com uma cada) e mesmo nas faixas que não são dominadas pelas mulheres, sua presença está sempre ali nos corais. Apesar de poder soar estranho para uma obra em homenagem a um cantor solo dono de uma das vozes mais graves da música, quando lembramos que muitas de suas gravações foram acompanhadas por sua esposa, Willie B. Harris, a predominância feminina é totalmente compreensível e muitíssimo bem vinda.




                A primeira contribuição de Tom Waits é a faixa de abertura, “The Soul of A Man”; sem dúvida, dentre as vozes disponíveis no “mercado”, Tom Waits é a escolha natural e a que mais se aproxima à de Willie Johnson e seria fácil apenas imitar a versão original de Johnson. No entanto, Waits deu uma acelerada no ritmo da música, tornando-se um daqueles pastores que colocam a congregação abaixo, enquanto a marcação é feita pelas palmas que remetem à congregação religiosa, recurso presente em várias outras faixas. Poucos conseguiram penetrar tanto na alma humana como na letra dessa música e ainda assim sair de lá sem saber o que é a alma humana. Na sua segunda contribuição, “John The Revelator”, Tom Waits parece renovado, resgatando a voz de um cantor de rua que precisa que sua voz alcance o máximo de pessoas possível; para mim, pessoalmente, o grande desafio era encontrar a honestidade e profundidade espiritual e religiosa para encarnar um tradicional cantor gospel, sobretudo Blind Willie Johnson, especialmente para alguém, tal qual Tom Waits, que não está preso aos limites da arte e gosta de vagar por temas delicados e, por vezes, contraditórios com a religião; para alguém que cantou em “don’t you know there ain’t no devil that’s Just God when he’s drunk”, minha preocupação era justificada, já que a parcela de sinceridade e profundidade é tão importante no conceito e na obra de Blind Willie Johnson. O resultado é que pela transformação tão grande em Tom Waits e não abandonando seu estilo tradicional, parece que ele pode cantar gospel e espirituais agora o resto da carreira, mantendo seu estilo gutural e underground. “John The Revelator”, a tradicional música gospel de pergunta e resposta com referências da Bíblia, é a prova disso.  

                Quem também ficou com duas faixas foi Lucinda Williams, soando incrível em cada uma delas. O estilo de slide, tradicional de Willie Johnson está presente em vários momentos do álbum, mas é Williams que consegue fazê-lo de forma magnífica. A primeira é “It’s Nobody’s Fault But Mine” e a segunda é a faixa que dá título ao álbum, “God Don’t Never Change”. Lucinda Williams brilha igualmente em ambas. Derek Trucks e Susan Tedeschi ficaram encarregados de “Keep Your Lamp Trimmed and Burning”; inclusive, na original, de 1928, Willie Johnson divide os vocais com sua esposa, Willie B. Harris. Na apocalíptica “Jesus Is Coming Soon”, sobre o desastre da gripe espanhola de 1918, que matou em torno de 5% das pessoas em todo o mundo, a banda canadense Cowboys Junkies conta com a participação mais especial de todas, o próprio Blind Willie Johnson. A música começa com um trecho da gravação original, gravada em 1928; no refrão, essa versão original retorna, mas agora acompanhada pela banda completa. O tradicional e o moderno. Absolutamente incrível. 

                É difícil escolher qual seria a melhor faixa do álbum, mas sem dúvida uma delas teria que ser a belíssima e tocante “Mother’s Children Have a Hard Time”, tocada por The Blind Boys of Alabama; o conjunto, a letra, a música, a harmonia das vozes, tudo faz com que a música inteira causa arrepios emocionantes. O desespero de um filho sem mãe está presente em cada um do Blind Boys of Alabama quando cantam: “Motherless children have a hard time, mother's dead They'll not have anywhere to go, wanderin' around from door to door Have a hard time” Com Sinéad O’Connor, em “Trouble Will Soon Be Over”, a pesada carga emocional permanece nas alturas. Poucas preces soam tão poderosas quanto essa música. Luther Dickson se junta a banda de pífano Rising Star Fife & Drum Band e traz o som da África Ocidental junto com eles para tocar “Bye and Bye I'm Going To See The King”.  Maria McKee se destaca na versão de “Let Your Light Shine On Me”. Das 11 músicas, a única na qual a equação não funcionou, infelizmente, foi em “Dark Was The Night-Cold Was The Ground”, com Rickie Lee Jones; o motivo é simples: ao vocalizar, tentar cantar na faixa instrumental mais clássica de Willie Johnson, ela acabou retirando toda sua magia e mística, que são os incríveis e belíssimos solos de slide, absolutamente intraduzíveis para qualquer língua falada que seja. Mas, em relação aos outros companheiros no projeto, Rickie Lee Jones ficou certamente com a missão mais difícil de todas, pois mexer na música que está viajando pelo Universo abordo do The Voyager não é fácil.

                Uma publicidade feita pela Columbia Records nos anos iniciais da carreira meteórica de Blind Willie Johnson dizia: “Hear Blind Willie Johnson spread the light of old-time faith”; God Don’t Never Change: The Songs of Blind Willie Johnson é mais do que uma simples coletânea para celebrar a carreira de um artista já morto; é mais do que apenas preservação de um legado histórico; é muito mais do que um golpe de publicidade, do que a reunião de artistas famosos para vender um álbum. Se for verdade o que dizem que a música é uma janela para Deus; bem, então God Don’t Never Change: The Songs of Blind Willie Johnson é a uma das janelas mais belas e iluminadas que foram abertas na música. 





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